São Paulo, quarta-feira, 24 de julho de 1996
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Elétrico e sucinto, filme não julga ninguém

AMIR LABAKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Comecemos pelo título. No Brasil, "Trainspotting - Sem Limites". "Trainspotting" não tem tradução fácil. É uma espécie de "hobby" marginal inglês: observar o movimento dos trens, checar o respeito aos horários, apenas pelo tedioso prazer de fazê-lo.
"Sem Limites" é a contribuição nacional. Remete a "Sem Destino", de Dennis Hopper. Há semelhanças pontuais entre os protagonistas, jovens desocupados céticos que encontram nas drogas uma forma de descompressão. Mas um mundo separa os hippies americanos dos pós-punks ingleses.
Compreende-se o gesto do subtítulo. É preciso classificar "Trainspotting". Muitos o fizeram chamando-o de "A Laranja Mecânica" dos anos 90 ou de "Kids" para adultos. Valem como aproximações. Depois de ver o filme, serão abandonadas, e "Trainspotting" torna-se a referência.
"Trainspotting" é um fenômeno cultural antes que cinematográfico. Começou no verão de 1993, quando Irving Welsh lançou o livro homônimo que se tornou um best-seller instantâneo. Numa linguagem crua e seca, cheia de gírias, Welsh retrata um grupo de jovens viciados em heroína que vivem na periferia de Edimburgo.
Entre uma picada e outra, roubam, agridem, divertem-se, apaixonam-se. Uns não querem largar, outros resistem o quanto podem, um decide tentar a vida sem drogas. Sem heróis ou bandidos.
O livro foi adaptado para os palcos em 1995 por Harry Gibson. Da estréia modesta no Circle Studio de Glasgow à consagração no West End londrino foi um pulo. "Houve antes algum espetáculo tão cru no West End?", assustou-se o sisudo "The Times".
Só faltava o cinema. O trio de "Cova Rasa", Danny Boyle (diretor), Andrew MacDonald (produtor) e John Hodge (roteirista), topou o desafio. "Trainspotting" virava coqueluche inglesa e cult planetário.
O filme fixa-se em cinco dos personagens criados por Welsh. Renton (Ewan McGregor), o viciado-filosófo, é o narrador. "Escolhi não optar pela vida. Razões? Quem precisa de razões quando tem a heroína?", anuncia na abertura.
Spud (Ewen Bremner) é o "junkie" amigável. Os baratos de Begbie (Robert Carlyle) são álcool e violência. Sick Boy (Johnny Lee Miller) topa todas e é obcecado por Sean Connery. Iggy Pop é o ídolo de Tommy (Kevin McKidd).
São os mosqueteiros niilistas da era pós-Thatcher. Não há mais empregos, ruíram as utopias, o Estado faliu e até mamãe não passa muito bem. Por que não querer tudo e já?
Eles roubam asilos de velhos, deixam o bebê de uma amiga morrer, transam e se drogam sem qualquer proteção. Alguns se dão bem, outros, mal. Apologia? Moralismo? Bobagem. Elétrico e sucinto, "Trainspotting" não julga nada e ninguém. Cada um que tire as próprias conclusões.

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