São Paulo, quinta-feira, 25 de julho de 1996
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Verdades e mentiras

OTAVIO FRIAS FILHO

Comentário publicado aqui, na semana passada, sobre dois livros recentes que giram em torno do regime militar (1964-1985), sugere o seguinte desdobramento: é possível que todas as lutas, frustrações e esperanças tenham sido vãs? É possível que 21 anos passem em branco, é possível, aliás, desperdiçar tempo, historicamente falando?
Para responder que não, basta lembrar que a democracia de hoje -a mais ampla e profunda que já tivemos- materializa o aprendizado daquele período. O refúgio do otimismo é essa certeza intuitiva de que não há experiência inútil nem tempo perdido, todo erro representa algum progresso, tudo o que ocorre é melhor do que se não houvesse ocorrido.
O que resulta patético é o eterno divórcio entre o que fazemos e o que julgamos estar fazendo. Este revolucionário imagina contribuir para a transformação social, quando apenas atrasa a fase final da industrialização; aquele militar pensa combater a subversão ou a corrupção, não em substituir importações, como ocorre de fato.
Essa comédia de equívocos e ilusões não pode ser desprovida de sentido, seu sentido é desfazer equívocos e ilusões anteriores. A primeira vítima do regime militar foi a idéia de um Brasil harmônico nas suas dissonâncias, um país bossa-nova ou cinema novo, niemeyeriano, que tinha por centro de gravidade a tradição literária do Rio.
Nos anos 50, em paralelo com a política de conciliação típica do populismo, predominou a idéia de que o Brasil convergia para uma unidade de estilo capaz de combinar novo e arcaico, vanguarda e folclore, futuro e passado, cidade e sertão. Essa idéia "integracionista" está no âmago, por exemplo, da obra de Guimarães Rosa.
O regime militar mostrou o quanto tal idéia era ilusória, "festiva", como se dizia na época, produto dos bons sentimentos e da má consciência de uma boemia que se desejava cosmopolita, na realidade ipanemense. O próprio deslocamento da capital do Rio para Brasília é ao mesmo tempo consequência e negação dessa idéia.
Houve quem acreditasse que o regime militar viria a ser uma reação à cultura crítico-urbana, chegou-se a prever uma ditadura carola, profundamente moralista e católica, quase anti-semita na sua fúria rural, regressiva. Não foi isso o que aconteceu, embora não faltassem fanáticos do tipo entre os adeptos da repressão. Também eles agiam às cegas.
Porque a obra do regime militar, se foi aglutinadora do ponto de vista da infra-estrutura e do mercado, se teve a pretensão de disciplinar, exerceu um efeito desorganizador no plano cultural e social. Já na metade dos 60 o tropicalismo registrava, na sua colagem kitsch de pedaços-tempo justapostos, o estilhaçamento da idéia de unidade.
A dificuldade para divisar uma linha de tradição no nosso passado está em que, mal encetamos um passo qualquer, temos de ajustá-lo aos influxos internacionais que o perturbam e interrompem. A ditadura abriu nossas feridas, expôs nossas contradições -e não será a menor delas que um regime feito de mentiras tenha revelado tanta verdade.

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