São Paulo, sábado, 27 de julho de 1996
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A banana foi a primeira medalha olímpica

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Os alemães acabam de construir um avião movido a energia solar e lhe deram o espantoso nome de Icaré. Queriam, é claro, homenagear ao mesmo tempo Ícaro, que morreu exatamente por desafiar a energia solar antes do tempo, e Ra, ou Ré, o rei-sol dos egípcios.
O nome é esquisito, mas o avião, pela foto que dele vi em "Time", é de uma graça única.
O curioso, nessa história, é que a imagem do avião não me saía da cabeça enquanto rolavam na tela da televisão, outro dia, as imagens da abertura da Olimpíada de Atlanta.
A Olimpíada não cuida de inventos e de progressos científicos e sim do muque e do espírito de competição que os gregos, em 776 A.C., estabeleceram como base dos jogos então implantados em Olímpia.
É verdade que a Olimpíada original tinha também prélios literários, musicais e de eloquência, os quais não parece terem interessado muito o barão de Coubertin, que em 1896 se viu possuído do espírito olímpico e ressuscitou os jogos.
E aqui entre nós, acho que os jogos predominaram sempre, baseados no muque e nessa sufocante vontade de ser o primeiro, que, sem dúvida, atormenta a espécie desde a fase simiesca.
A primeira medalha olímpica de ouro, foi, imagino, a banana. Icaré estava disputando uma banana de modestos US$ 66.000 doados pela cidade de Ulm, que no Brasil só se conhece por ser centro de arte.
Nutrido exclusivamente de sol, mas com todas as características de um futuro avião de passageiros, Icaré voou durante 15 minutos a uma altitude de 400 metros. Tecendo o número oito no ar. A marca do infinito.
Nada de gasolina, de sujeira. No dia lindo, Icaré, que tem o corpo longo e esguio como o dessas meninas que a televisão vive inventando o tempo todo e asas negras como (permitam um Alencarzinho) a da graúna, deixou boquiabertos sólidos cidadãos de Ulm e Stuttgart.
Na minha tela continuava a Olimpíada de Atlanta, e eu agradecia em silêncio o fato de os americanos prezarem tanto a voz humana e a música. Passei há anos um Natal em Nova York e pude escolher no jornal entre doze performances do "Messias" de Haendel.
Belas vozes animaram a estréia olímpica de Atlanta, e registre-se o bom gosto de não aparecer em lugar nenhum qualquer recordação de Scarlett O'Hara.
Mas o que eu não conseguia mesmo era esquecer o tal Icaré pilotado por um certo Werner Scholz. Pensei mesmo (desculpem a intromissão de recordações pessoais antigas) naquele Wernher von Braun, que inventou as bombas voadoras que explodiam em Londres em 1943, quando eu era correspondente de guerra.
Icaré redime V-2, a chamada bomba da vingança número 2, a de von Braun. Icaré vem de uma nova Alemanha. Aliás, um dos concorrentes de Icaré (acho que nem saiu do chão) se chamava "O Sole Mio".
E eu, sempre a bordo de Icaré, fui me lembrar (enquanto um comovente Muhammad Ali surgia na tela, fantasma, ele também, do que já foi) do mais tecnológico dos personagens da mitologia grega, Dédalo, pai de Ícaro.
Afinal, o mero fato de não sei quantos bilhões de seres humanos estarem como eu, pasmados diante da telinha, justificava lembrar que em parte devíamos o espetáculo a inventores como Dédalo, que não só fez o labirinto de Creta, como, prisioneiro do rei ingrato em uma torre, resolveu fugir pelo único caminho possível: o dos ares.
Construiu suas potentes asas com as penas de grandes pássaros para costurá-las em um tecido ao próprio corpo, e para colar outras, com cera, onde eram mais necessárias.
A tudo isso assistia seu filho, Ícaro, bonitão, assanhado e desobediente, pioneiro clássico, talvez, do consumo de certas drogas.
Dédalo cansou de dizer ao rapaz que tinham que voar longe com aquelas asas, por ares nunca dantes navegados, indo do Egeu até selvagens terras de nomes sem doçura, acerados, como Stuttgart, Ulm. E a condição básica para atingirem esse objetivo era não voar muito alto, para que o calor do sol não derretesse a cera e deixasse implumes os voadores.
Como tem sido amplamente noticiado - desde Heródoto, Tucídides, Ovídio -, Ícaro, ao sair pela janela da torre, entrou naquele barato azul que era o céu por cima do mar Egeu, escapou das vistas e das asas paternas, desafiou o sol, que esperava, para colaborar com o homem, o ano de 1996, e literalmente se espatifou contra o mar.
Ganhou no Egeu o nome de uma ilha, Icária, mas a própria ilha quase foi a pique de tão inundada pelas lágrimas de Dédalo.
A Dédalo não restou consolo nenhum que não fosse o de continuar inventando, inventando.
Só que, com a morte do filho, piorou muito de temperamento. Ficou mais mesquinho, impaciente com aprendizes, como um certo sobrinho, chamado Perdix e que era talentoso demais. Estudando espinhas de peixe na praia acabou por inventar o serrote. Pior ainda, com tiras de ferro que haviam sobrado de experiências de Dédalo, juntou-as com uma presilha e inventou o compasso.
Quando Dédalo viu que o menino, milênios antes do surgimento da Bahia e de Gilberto Gil, já estava munido de régua e compasso, atirou-o ao mar, do alto da torre para onde voltara.
Um deus do Olimpo ficou com raiva da prepotência de Dédalo e colheu Perdix no ar, para lhe poupar a queda e a vida. Mas só teve tempo de transformá-lo na perdiz, ave que voa baixinho. Ora, convenhamos que não morrer mas continuar vivo como perdiz quase que não vale a pena.
Nós tivemos um Ícaro, Santos Dumont, que fez da sua vida um triunfo mas acabou caindo em um negro mar Egeu de depressão porque não teve para acudí-lo um deus forte, um país poderoso.
Sentiu que o empurravam pela janela da torre e que seu destino, na melhor das hipóteses, era virar perdiz. Suicidou-se no Guarujá, dia 23 de julho de 1932.
Nesse ponto resolvi esquecer a leveza de Icaré e as grossuras tecnológicas de Dédalo, enquanto aumentava o volume da tevê, onde ia aparecer nossa seleção olímpica de futebol antes do jogo inaugural contra o Japão.

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