São Paulo, domingo, 28 de julho de 1996
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A volta ao normal

ROBERTO CAMPOS

Inflação é como bebedeira. Excitante, no começo, depois tudo vai ficando confuso, e, no final, vai se perdendo o sentido das coisas. A devastação moral que a hiperinflação de 1923 causou na culta Alemanha deixaria marcas por muitos anos, e todos nós sabemos como terminou. No Brasil, não chegou a ser tão brutal. Afinal, não perdemos nenhuma guerra, e nossa inflação foi feita mesmo em casa, com grande engenhosidade, é certo, mas sem a mínima influência de tecnologia estrangeira...
Somente Brizola persiste em atribuí-la às "perdas internacionais", expressão que as pessoas normais usam para queixar-se de extravio de bagagem no aeroporto de Miami... Não há dúvida de que a inflação serviu para mostrar nossa inteligência nativa e imaginação criadora. Inventamos mecanismos eficientíssimos de adaptação. A engenharia financeira das nossas empresas despertou muita confiada admiração nos nossos parceiros industrializados.
O fato, porém, é que estava injetando no país penetrantes venenos morais e deformando sua mentalidade econômica. Perdemos a capacidade de pensar em eficiência produtiva, porque esta avança por ajustes progressivos e não dá saltos. Muito mais importante era o jogo financeiro, onde se podia dar grandes tacadas.
A competitividade não tinha muita importância. No mercado interno, o consumidor comprava qualquer coisa, mesmo porque a moeda se derretia e não havia tempo de comparar preços e escolher. No auge inflacionário que antecedeu o Plano Real, tornou-se válida a definição de hiperinflação segundo a qual tomar o táxi é mais barato do que o ônibus, porque neste se paga na entrada e aquele na saída. A concorrência externa, por sua vez, era amortecida pelos mecanismos protecionistas, pelos custos financeiros da importação e pelo tempo gasto nas operações.
Como tudo estava distorcido havia muito tempo, acabamos por desenvolver uma espécie de normalidade da aberração. O sistema passou a funcionar como um conjunto de certo modo integrado, encaixando-se uns erros nos outros. Os enormes déficits do setor público, por exemplo, ficaram em boa parte mascarados pela combinação da rápida erosão do valor dos compromissos com a "cultura do calote", ou seja, a malandragem de adiar ou simplesmente deixar de pagar as contas.
O sistema bancário, tanto público quanto privado, passou a viver principalmente da intermediação inflacionária. A qualidade dos ativos e a concorrência na disputa da clientela e na oferta de novos produtos tornaram-se considerações secundárias. Para as empresas do setor produtivo, a receita não-operacional ganhou tanta importância quanto a da produção propriamente dita, senão mais.
Não seria razoável culparmos os administradores, os gerentes e os funcionários do setor público e privado pela sua adaptação a esse estado de coisas. Não foi uma escolha deliberada de nenhum deles. Aconteceu. Por uma perversa confluência de políticas econômicas irracionais, de deformações ideológicas refletidas no processo político e nas instituições, e de muita demagogia e desinformação, no contexto de uma conjuntura internacional difícil, que os governos não foram capazes de entender.
Árvore que andou crescendo torta é difícil de consertar. Esse é o resumo da ópera, hoje, neste nosso país tropical. Não há outro remédio senão tratar de arrumar o país pela estabilização de preços. Mas uma espécie de conspiração tácita de velhos populistas, sindicalistas em crise existencial, esquerdas paleolíticas e corporativistas e outros espertos privilegiados gostaria de manter o estado das coisas tal como antes. Não podendo impedir que o país faça parte do mundo, procuram, pelo menos, atrasar o mais possível o seu ingresso nos tempos atuais. A arrumação da casa é tida como perversão neoliberal.
Mas esse não é o pior foco de resistência. O sistema político, como um todo, oferece uma inércia tremenda às mudanças. Aí não é, tampouco, por "culpa" individual de ninguém. Acontece que a estrutura está envelhecida e defasada, e cada candidato a um mandato popular tem de concorrer às urnas dentro das condições que efetivamente existem. Como se sabe, o principal componente do desequilíbrio das contas públicas está nos déficits dos Estados e dos municípios.
Tendência a gastar mais do que entra no caixa não é uma invenção brasileira. É de todos os governos e de todos os tempos -e não foi à toa que o documento básico, a certidão de nascimento da democracia moderna, a Magna Carta inglesa de 1215, consistiu numa imposição ao soberano de não gastar senão o autorizado pelos representantes do povo. Mas, se não inventamos o problema, pelo menos conseguimos complicá-lo bastante.
A Constituição de 88 transferiu recursos, mas não encargos, da União para os Estados e municípios, que aumentaram os gastos, sem prioridades rigorosas. Se levarmos em conta as estatais deficitárias, os bancos estaduais usados para politicagem, a irredutibilidade dos vencimentos e outros privilégios do funcionalismo, não é difícil adivinhar o episódio seguinte da novela.
Para 13 Estados, todos do Norte e do Nordeste, os repasses federais montam a mais de 50% das receitas. São quase 4.800 municípios inadimplentes, num total de pouco mais de 5.000 que o país tem. E o sistema habitacional (que em 1982 financiou 541 mil unidades, criando emprego para mão-de-obra subqualificada, e hoje não passa de 77 unidades) é um setor falido. O rombo potencial do FCVS é de quase R$ 50 bilhões, pelos subsídios à classe média cujas prestações foram descasadas do valor real da dívida.
É claro que os problemas não são só do setor público. Na transição para a estabilidade monetária (com inflação de 12% a 15% ao ano, ainda não é motivo de grande orgulho) o setor privado tem comido o pão que o diabo amassou. Inevitável, porque a redução da inflação põe em relevo as ineficiências e tira as vantagens do devedor. O ajuste está sendo feito pelo corte de despesas, de pessoal e até pela falência. No caso dos bancos, foi preciso implantar o Proer (ao custo -moderado- de 2% do PIB), programa mal compreendido e demagogicamente atacado, quando, na realidade, é um método universalmente utilizado, porque as instituições financeiras têm um caráter sistêmico que pode provocar uma septicemia grave em toda a economia. No setor público, porém, o saneamento depende de decisões de políticos, que pensam em votos, não em balancetes. O governo agravou suas próprias dificuldades pela lentidão das privatizações.
A indústria vem reclamando, com crescente estridência, da redução das barreiras protetoras contra a concorrência estrangeira. De fato, o choque foi sério, uma vez que, até 1990, o regime era quase uma reserva de mercado universal. Foi, sem dúvida, um erro a valorização cambial no início do Plano Real. E também não há como negar que há muita manobra desleal dos concorrentes estrangeiros. Isso justificaria gradualismo na liberalização de importações, mas não o exagero protecionista das tarifas de 70%, que habituará a indústria a usar muletas em vez de se exercitar na fisioterapia.
Mesmo sem reformas constitucionais, o governo tem bastante espaço para atacar questões urgentíssimas, como o custo Brasil, vital para as contas externas e para a criação de emprego.
É surpreendente no atual governo, cuja retórica é liberalizante, a subutilização de um instrumento poderoso para redução do custo Brasil: a desregulamentação. O Banco Mundial estima que uma redução de nossos absurdos custos portuários aos níveis internacionais equivaleria a uma desvalorização cambial de 6%, beneficiando os exportadores. Entretanto, o uso de terminais privativos para cargas de exportação e importação depende de outorga específica da Receita Federal, que alega não ter pessoal para a alfandegagem e quer cobrar uma taxa para "aperfeiçoamento" dos burocratas. O comércio exterior parece menos importante que a comodidade da burocracia planaltina. Privatização e desregulamentação são boas receitas para atenuar a falência do governo.

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