São Paulo, domingo, 28 de julho de 1996
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Países 'sérios' devem estocar armas nucleares, diz Prêmio Nobel de física

RENATO EJNISMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hans Bethe, 90, é um dos maiores físicos do século. Ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1967 por ter explicado por que as estrelas brilham -isto é, o seu mecanismo de produção de energia.
Como quase todos os grandes cientistas de sua área, teve papel importante no desenvolvimento da bomba atômica.
Bethe nasceu na Alemanha, em 2 de julho de 1906. Fugindo dos nazistas, emigrou para o Reino Unido em 1933. Em 1934 estava nos EUA. Naturalizou-se cidadão norte-americano em 1941.
Depois de trabalhar nas pesquisas de desenvolvimento do radar, chefiou a divisão de física teórica do Projeto Manhattan, em Los Alamos (que desenvolveu as bombas atômicas que explodiram sobre o Japão, em 1945).
Depois da explosão das primeiras bombas nucleares, o físico passou a combater a corrida armamentista e participou de comitês internacionais para a criação de tratados não-armamentistas.
No entanto, Bethe defende a manutenção de estoques preventivos de armas nucleares. Objetivo: dissuadir governos "pouco responsáveis", como o do Iraque, que podem desenvolver a bomba. O argumento foi utilizado pelo presidente Jacques Chirac para sustentar os testes nucleares franceses em 95.
Em entrevista à Folha, Bethe comenta a posição brasileira a respeito dos tratados nucleares, explica sua participação no projeto da bomba e fala de sua vitalidade -trabalha até hoje em seu laboratório. Diz que, se fosse estudante de graduação na universidade, gostaria de se dedicar à biologia molecular.
*
Folha - O senhor acha contraditório ter sido uma das figuras principais na criação da bomba atômica e, mais tarde, uma das figuras principais na luta contra a corrida armamentista nuclear?
Bethe - De fato, é contraditório. A Segunda Guerra Mundial foi um problema muito sério e a doutrina nazista ameaçava a civilização ocidental inteira. Por isso, era evidente que tínhamos de resistir a ela e trabalhar o máximo possível para que os nazistas fossem vencidos. Assim, desde o início, me ofereci para trabalhar como voluntário no Laboratório de Radiação do Massachusetts Institute of Technology (MIT), no radar.
Lá estava eu, feliz, fazendo isso, quando Oppenheimer me pediu que me juntasse ao projeto da bomba atômica. Assim, fui um dos fundadores de Los Alamos. Quando Los Alamos se reuniu em abril de 1943, fui nomeado diretor da divisão teórica.
Folha - Como era o ambiente nesse lugar?
Bethe - Estávamos tremendamente engajados, todos nós queríamos que desse certo. Trabalhávamos juntos e uma coisa que "Oppie" (Oppenheimer) instituiu foi uma reunião semanal com as pessoas mais importantes, cerca de 50 delas, que ficaram sendo conhecidas como o Conselho Coordenador.
Não havia segredos, tudo podia ser discutido ali. Não havia divisão do conhecimento, contrariamente ao que desejava o general Grove, e isso era essencial porque contávamos uns aos outros o que havíamos aprendido e quais os problemas que encontrávamos. Muitas vezes, alguém de outro grupo apresentava uma boa sugestão para resolver o problema.
Folha - Enquanto isso o senhor conversava sobre física em geral com seus colegas?
Bethe - Nunca. Algumas pessoas faziam isso, por exemplo Feynman. Mas eu achava que tínhamos que dar cabo de um grande empreendimento e tínhamos de fazê-lo o mais rapidamente possível. Não sobrava tempo.
Folha - O senhor assumiu isso como dever pessoal porque foi obrigado a fugir da Alemanha por causa dos nazistas?
Bethe - Não, eu fazia parte de uma equipe. Pensava, na época, que a bomba provavelmente seria usada contra a Alemanha, mas a vitória sobre a Alemanha acabou sendo conquistada antes de que a bomba ficasse pronta.
Folha - O que o senhor achou quando a bomba foi atirada?
Bethe - Acho que foi a coisa certa a fazer. A principal coisa que ela salvou foram vidas japonesas. Se não fosse pela bomba, o bombardeamento convencional das cidades japonesas teria continuado e o número de baixas teria sido muito, muito maior do que foi em Hiroshima e Nagasaki.
Folha - Os cientistas sabiam que a bomba seria lançada?
Bethe - Supúnhamos que seria. Pediram que enviássemos duas bombas ao Pacífico, então mandamos. Tínhamos uma terceira de prontidão. Depois da rendição japonesa recebemos ordens de não embarcá-la.
Folha - Como o senhor se sentiu após o primeiro teste?
Bethe - O primeiro sentimento foi de realização. Havíamos conseguido. E o segundo sentimento foi horrível.
Folha - Em que sentido?
Bethe - Esse poder destrutivo passaria a existir e tornaria as guerras muito piores do que haviam sido antes. Jogamos duas bombas no Japão, mas em determinada época, os Estados Unidos e a União Soviética tinham dez mil bombas cada um.
Folha - O senhor acha que o objetivo último do combate às armas nucleares deve ser a eliminação total de todas?
Bethe - Acho que isso não é possível, porque é fácil fabricar uma arma nuclear e há muitos países que não têm consciência e que provavelmente criariam problemas. O Iraque é um dos exemplos óbvios. A Coréia do Norte é outro.
O Iraque se esforçou muito para produzir bombas nucleares mas não conseguiu. Mas existem países um pouco mais responsáveis. A Índia, por exemplo. A Índia sabe produzir uma bomba atômica e acho que poderia produzi-la, se quisesse.
Agora, haverá um novo governo indiano e não se pode prever o que fará. Então, há muitos países irresponsáveis no mundo, que poderiam fabricar bombas nucleares. E não há nada que os impeça, exceto a existência de países mais estáveis, como os Estados Unidos e, espero, a Rússia de hoje, que possuem certo número de armas nucleares estocadas que poderiam ser usadas numa emergência para derrotar um país que estivesse errado. Acho que os países responsáveis devem conservar algo em torno de cem armas nucleares.
Folha - O Brasil não assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear porque afirma que o esse acordo não apenas impede os países em via de desenvolvimento de obter a tecnologia para a construção de armas nucleares mas também, o que é mais importante, impede esses países de obter qualquer tipo de tecnologia nuclear, inclusive aquela para fins pacíficos. O senhor concorda com isso?
Bethe - Não, o uso de reatores nucleares para fins energéticos é perfeitamente permissível. Na realidade, o tratado acompanhou o chamado de Eisenhower por átomos pela paz. E acho que parte do tratado diz que os países devem receber apoio quando tentam construir reatores nucleares para obtenção de energia. Mas em seu caso, o Brasil e a Argentina passaram anos preparando armas nucleares para usar um contra o outro, mas depois vieram governos mais responsáveis e eles assinaram um acordo.
Folha - Na sua opinião, existe alguma coisa particularmente importante sendo feita na ciência, hoje em dia?
Bethe - Digamos que se, hoje, eu fosse estudante universitário, provavelmente estudaria biologia molecular. Acho que é nesse campo que serão feitas as descobertas mais importantes dos próximos vinte anos.
Folha - O que o senhor está fazendo hoje?
Bethe - Nos últimos vinte anos venho trabalhando com explosões de (estrelas) supernovas e acho que já adquiri uma boa compreensão do mecanismo da explosão.
Folha - O senhor está completando 90 anos e ainda é um dos pesquisadores mais importantes em seu campo. Qual é seu segredo?
Bethe - Não fazer nada por minha saúde.
Folha - Como é sua vida diária?
Bethe - Costumo vir ao escritório. Hoje, por exemplo, cheguei só ao meio-dia; ontem cheguei às 10h, mas saí cedo. Faço o que é preciso, só isso.
Folha - Observei que há uma placa ao lado de sua lousa dizendo "GUARDAR". Ela tem algum significado especial?
Bethe - Claro, é muito especial. Se a placa diz "GUARDAR", significa que o que eu escrevi na lousa deve ser conservado. O outro lado da placa diz "APAGAR".
Folha - Conta-se que o senhor resolveu o problema de como ocorrem as desintegrações nucleares durante viagens de trem e de metrô. É verdade?
Bethe - Eu me interessei por núcleos em 1933. Estava trabalhando com Rudolph Peierls. Trabalhávamos juntos muito bem em Manchester (Reino Unido). Um dia, visitamos o laboratório Cavendish, em Cambridge, onde Chadwick e Goldhaber haviam descoberto a desintegração do dêuteron pelos raios gama.
Chadwick nos lançou o seguinte desafio: "Aposto que vocês não conseguem criar uma teoria desse processo". Então, enquanto voltávamos de trem de Cambridge para Manchester, uma viagem muito demorada, produzimos a teoria.
Era uma teoria linda, muito simples. O único problema é que estava errada. Esse problema foi resolvido por Wigner, no metrô, entre a Universidade de Columbia e a estação Penn (EUA). Eu a incluí em meu artigo "Resenhas da Física Moderna". Mais tarde, ela foi ampliada por Teller e Schwingler e ficou uma teoria belíssima.
Folha - O sr. também teria começado a elaborar a teoria da eletrodinâmica quântica (QED), que explica a interação entre matéria e luz, num trem. O senhor acha que os trens são um bom lugar para encontrar inspiração?
Bethe - (ri) Não, não acho. Em ambos os casos, e especialmente no caso da QED, eu estava muito estimulado e queria muito destrinchar a teoria e colocá-la no papel. Eu participei da conferência de Shelter Island e tive a idéia de que provavelmente conseguiria resolver o problema. O primeiro momento que tive para me sentar a sós e trabalhar em cima do problema foi no trem.
Folha - Foi fácil?
Bethe - Sim, foi bastante fácil.
Folha - Conta-se outra história, segundo a qual Alpher e Gamow teriam convidado o senhor a assinar um "paper" que acabou se revelando muito importante para a consolidação da teoria do Big Bang. Mas o convidaram apenas porque, desse modo, a lista dos autores formaria as primeiras três letras do alfabeto grego. Como foi isso?
Bethe - Alpher, Bethe e Gamow. É verdade, mas não passou de uma brincadeira. O "paper" não estava obviamente errado, então eu disse: "OK, podem me incluir". Agora sabemos que o "paper" estava obviamente errado. Os elementos químicos não foram constituídos no Big Bang, mas muito depois, na formação das grandes estrelas.

Tradução de Clara Allain

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