São Paulo, domingo, 28 de julho de 1996
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As imperfeições de uma artista que sonhou ser deusa

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ninguém que me dissesse, em 1994, que a declarada admiração dos meus amigos alemães pelas montanhas nos arredores de Munique -ou mesmo seu hábito de esquiar e praticar alpinismo- era um "sentimento protonazista", me faria acreditar. "Sempre que penso no meu país, penso nessa paisagem de pinheiros e de montanhas", um deles comentou, braços cruzados, olhando para o cume branco de neve das montanhas em Lenggries.
Continuo não acreditando que meus amigos sejam nazistas. Afinal, aquele é o país deles, aquela é a paisagem, aquele o sentimento muito natural. Mas parece que o fascínio dos alemães pelas montanhas entrou de vez para a lista dos estigmas formadores do nacional-socialismo alemão.
Num documentário de 1994, "Arquitetura da Destruição", o diretor sueco Peter Cohen mostrou que a paisagem montanhosa era o motivo preferido de Hitler. No seu chalé alpino de Berghof, Hitler mandou construir a maior janela retrátil do mundo, dando para as encostas de uma cadeia de montanhas. Segundo Cohen, o führer queria ter ali emoldurado parte do sonho estético do nazismo, o monumental das montanhas, o sonho burguês inflado.
Já em 1974, a ensaísta americana Susan Sontag dizia sobre os filmes montanhistas do diretor alemão Arnold Fanck, feitos nos anos 20 e 30: "As ficções alpinas são histórias de aspiração a lugares altos, de desafios e provações do primitivo, do elemental; são sobre a vertigem ante o poder, simbolizada pela grandiosidade e beleza das montanhas".
"(...) Sem dúvida pensados como apolíticos quando foram feitos, estes filmes agora parecem ser, numa retrospectiva (...), uma antologia de sentimentos protonazistas. O alpinismo nos filmes de Fanck era uma metáfora visualmente irresistível para uma aspiração ilimitada em direção à elevada meta mística, tão bela quanto aterradora, que mais tarde se concretizou na adoração ao führer."
Nesse ensaio, chamado "Fascinante Fascismo", Sontag já gritava contra o que ela chamava de "a reabilitação" (pelas sociedades liberais) de "figuras proscritas" pela história. A figura a quem ela se refere é a alemã Leni Riefenstahl, atriz principal dos filmes de Fanck e cineasta predileta de Hitler, realizadora dos principais filmes de propaganda nazista do Terceiro Reich -entre eles os premiados "O Triunfo da Vontade" (1935) e "Olympia" (1936).
Se Susan Sontag já detestava o "louvor" a Riefenstahl em 1974 (por ocasião do lançamento do livro de fotografias "Os Últimos Nuba", trabalho da alemã feito com negros do Sudão), imagino o que não detesta hoje. Riefenstahl esteve, até poucas semanas atrás, no centro dos comentários de muita gente que, em São Paulo, saía impressionada do filme "Leni Riefenstahl: a Deusa Imperfeita" (1995), documentário de Ray Müller sobre sua vida. Também por conta do "revival" da cineasta, acaba de sair na Inglaterra uma biografia sua, "A Portrait of Leni Riefenstahl", de Audrey Salked.
Na verdade Riefenstahl não foi "proscrita", como quer Sontag. Depois da Segunda Guerra, ela foi julgada por um tribunal de "desnazificação" e absolvida, tida apenas como "simpatizante" do nazismo. Nem essa nova "desnazificação" da cineasta significa (como pensaria talvez Sontag) o retorno do fascismo. Qualquer um que tenha assistido ao documentário de Ray Müller sobre Riefenstahl teve alguma empatia pela figura daquela alemã de 9O anos de idade e sua história de vida.
O ensaio de Sontag sobre Riefenstahl destrói sem explicar. Na verdade, trata-se de um interessante confronto entre a ideóloga da doença -a americana Sontag, autora de coisas como "A Doença como Metáfora" (1984), "Aids e Suas Metáforas"- e a fotógrafa do corpo sadio, da acrobacia e do esporte: a alemã Riefenstahl, dançarina, atriz, uma das primeiras mulheres montanhistas numa época em que essa atividade era exclusiva de homens.
Sontag viu assim a "reabilitação" de Riefenstahl: "A atual desnazificação e defesa de Riefenstahl como sacerdotisa da beleza -como diretora de cinema e, agora, como fotógrafa- não é muito alvissareira para a perspicácia dos peritos em detectar os anseios fascistas em nosso meio (...). Em algum lugar, é claro, todos sabem que algo mais do que a beleza está em jogo numa arte como a de Riefenstahl".
Acontece que é muito mais instrutivo, atraente e divertido assistir ao documentário "Leni Riefenstahl: A Deusa Imperfeita" do que ler o "Fascinante Fascismo" de Susan Sontag. No filme, de corpo inteiro, toda viva e esperta, Riefenstahl tenta se explicar o tempo todo, tenta convencer o espectador da sua falta de culpa. Não convence, mas pelo menos expõe ali a ferida que é preciso expor, dando, sem saber, verdadeira aula sobre os mecanismos de funcionamento de uma mentalidade fascista.
O grande mérito do filme de Ray Müller sobre Riefenstahl é mostrar como uma pessoa se tornava (ou se torna) nazista. Como diz Adorno em seu esclarecedor "Educação após Auschwitz", "é preciso buscar as raízes nos perseguidores (...). É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos".
Ao repudiar a "reabilitação" de Riefenstahl, Susan Sontag -romancista, ensaísta, feminista e militante de esquerda, além de cineasta e fotógrafa- apela para os passaportes morais ditados por mandamentos e normas de "vínculos de compromisso" da atual doença americana, a ideologia da reparação e do politicamente correto. Também segundo Adorno, passaporte moral não tem eco no indivíduo, é "ilusão imaginar alguma utilidade no apelo a vínculos de compromisso ou até mesmo na exigência de que se restabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas sejam melhores".
Ou seja, é impossível condenar o nazismo de Riefenstahl só porque o nazismo -por alguma ordem superior- deve ser condenado. Quem assistiu ao documentário de Ray Müller viu que é impossível perdoar a total ausência de consciência política numa artista que dizia fazer apenas arte e técnica no auge do genocídio nazista.
Susan Sontag estigmatizou Leni Riefenstahl. Mas as montanhas da Alemanha já não são vontade de domínio e extermínio. São apenas as montanhas.

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