São Paulo, domingo, 28 de julho de 1996
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Na prisão com Glauber e Callado

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

"Fernando Henrique é um animal político, queria o poder. Conseguiu". Na avaliação de Carlos Heitor Cony, a metamorfose do intelectual de esquerda no presidente de centro-direita se explica por razões táticas, não por motivações ideológicas.
No trecho abaixo, Cony critica FHC, não poupa seus críticos e fala de seu relacionamento com Glauber Rocha, com quem esteve preso em 65, quando este escrevia as cenas de "Terra em Transe".
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Folha - O regime militar passa por uma reavaliação. O tema da responsabilidade do Estado em vários crimes políticos está na agenda do governo Fernando Henrique e dois livros recém-lançados abordam o período, o de memórias do ex-ministro Jarbas Passarinho e o romance de Marcelo Paiva, "Não És Tu, Brasil?". O seu livro "Pessach: a Travessia", de 1967, que deve ser relançado no final do ano, tem como tema a guerrilha vista a partir do dilema do intelectual que adere à luta armada. Um livro de certa forma datado, que tinha muito de premonitório e volta a ser atual.
Cony - Em 67, saíram três obras sobre o tema da guerrilha, da luta armada como horizonte de resolução da crise política. "Quarup", do Antonio Callado, "Terra em Transe", do Glauber Rocha, e o meu livro, "Pessach". O caminho das ramas era lembrado como solução extrema. Cada um pegou o tema de uma maneira.
Folha - O sr. conhecia bem o Glauber?
Cony - Nós estivemos presos juntos em 65, na mesma cela, Glauber, Callado e eu. Foi o episódio que ficou conhecido como "Oito do Glória". Ia haver uma reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos), durante o governo Castello Branco, e o regulamento da entidade proibia que se realizasse essas conferências em países não-democráticos. Quando houve o golpe de 64, a reunião já estava marcada. Um dos esforços da diplomacia do Castello foi confirmar a reunião. Seria a bênção da organização de que o Brasil era uma democracia. Os intelectuais então se organizaram para protestar contra aquilo. Estavam lá o Glauber, o Callado, o Flávio Rangel, Thiago de Mello, Márcio Moreira Alves e outros. Demos uma vaia e fomos presos. Ficamos presos quase um mês. O Glauber já tinha levantado a produção do "Terra em Transe" e estava escrevendo as cenas. Ele escrevia lá na prisão, em papel de embrulho. O Callado já tinha escrito cerca de 90% do "Quarup", e eu começava a escrever, sem saber o que o Callado tinha feito. O meu livro acabou tendo uma crítica muito ostensiva à esquerda e ao Partido Comunista, coisa em que o Callado não entrou. Ele não quis fazer uma divisão.
Folha - Essa opção custou caro...
Cony - Ah, você nem imagina como fui patrulhado, à esquerda e à direita. O próprio livro foi sabotado de toda maneira, inclusive dentro da editora, a Civilização Brasileira. Havia um grupo grande do partidão com interferência na editora. O livro foi considerado uma pedra no sapato. Achava-se que não era o momento de questionar a pureza ideológica, a pureza tática da esquerda. Ora, não fiz outra coisa a não ser isso. Levei para a ficção o meu questionamento como jornalista. Não é porque eu critico o vencedor que estou dando razão ao vencido. Isso para mim é muito importante. Foi em 64 e é ainda hoje. Eu critico o Fernando Henrique, mas não dou razão aos que o criticam. Talvez seja um truque meu. Não, acho que é mais do que um truque. Mas, voltando à época do regime militar, a coisa foi se configurando de tal forma, que a partir de um determinado momento você só tinha duas saídas: pegar o violão ou o fuzil. Eu, como não toco violão, toco piano, e não gosto de fuzil, porque me repugna a violência, tive que parar mesmo. Um prenúncio disso tudo ficou nessas três obras que citei. Não esqueça que o personagem do Jardel Filho no "Terra em Transe", o poeta Paulo Martins, morre com uma metralhadora na mão.
Folha - O Glauber fecha o filme numa espécie de delírio épico, acentuado pelo trecho do poema do Mário Faustino que ele cita: "Não conseguiu firmar o nobre pacto/ Entre o cosmos sangrento e a alma pura /(...) Gladiador defunto mas intacto/ Tanta violência mas tanta ternura". Isso tinha uma força extraordinária. Quem se lembra de Mário Faustino hoje?
Cony - É um poeta muito, mas muito interessante. Hoje dão muito valor ao Hélio Oiticica e esquecem o Faustino. Ele foi muito superior a qualquer um de nós. Ele teve uma dupla função, como poeta e crítico. Como ensaísta, eu pelo menos não conheço nada melhor, nada mais lúcido do que o ensaio de Mário Faustino sobre "Invenção de Orfeu", do Jorge de Lima. É obra-prima. A poesia dele também é de altíssimo nível. Ele me telefonou na véspera de morrer. Se vivesse mais, seria hoje o anti-José Guilherme Merquior. É lamentável que ele esteja tão esquecido, quando a força dele é muito mais deflagradora de cultura do que a do Oiticica. Oiticica é mais pitoresco, mais provocador, mas o Faustino é muito mais estruturado.
Folha - O sr. falou do Merquior, lembrei que o Paulo Francis escreveu um prefácio elogioso ao "Pessach", no qual previa que o livro ia lhe causar muita dor de cabeça.
Cony - Ele disse a mim: "Cuidado que este livro vai te sepultar". O livro não me sepultou, mas ele acertou quando disse que o livro ia despertar uma conspiração da mediocridade. A minha posição é parecida com a do Paulo, em que pese o fato de ele estar onde está. Eu sempre digo que eu e o Paulo temos divergências não-relevantes. Brigamos por causa do melhor maestro, da melhor intérprete do Wagner... Nessas coisas, nós vamos até o fundo. Sobre política não.
Folha - Mas o Francis é um liberal dos mais empedernidos.
Cony - Não, ele tem, ele tem... um verdadeiro deslumbramento pela inteligência. Eu não tenho. Ele se deslumbra com a inteligência, a dele e a dos outros, eu já não me deslumbro. Agora, o que ele tem é um bom gosto extraordinário. Ele pode errar no varejo, mas no atacado ele nunca erra. De qualquer forma, é uma figura muito difícil de se discutir. Eu mesmo nunca me considerei uma pessoa de esquerda ortodoxa, eventualmente hoje estou na esquerda. Neste ponto pode-se dizer que o Paulo Francis era de esquerda nos anos 60.
Folha - Bom, já que o sr. entrou no assunto, vamos falar de outra figura difícil de se discutir, Fernando Henrique Cardoso.
Cony - O caso dele é diferente. Ele foi de esquerda porque queria o poder. Ele foi na onda, era um surfista, tudo levava a crer que a esquerda ia chegar ao poder naquela época. Quando ele viu que a onda mudou, ele mudou também. O problema do Fernando Henrique é que ele é um animal político, queria o poder. Conseguiu.

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