São Paulo, domingo, 28 de julho de 1996
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PATRÍCIA MELO

ANDREA FORNES

Jovem autora de "O Matador" é traduzida na Itália e na França, e fará a adaptação para o cinema "O Xangô de Baker Street
Exagero chamar o próximo romance de Patrícia Melo de autobiográfico. Mas o protagonista de "Porfírio" (título provisório do livro que está sendo aprontado para o final do próximo ano) terá uma das características da autora que mais saltam aos olhos. Na descrição de sua criadora: "O personagem é um leitor voraz, que vai misturando todas as obras para colocá-las em sua própria criação".
Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Raymond Chandler, Dashiel Hammett, Dostoiévski, Émile Zola, Albert Camus, Wilkie Collins, Emile Gaborio, W.R. Burnett, G.K. Chesterton, Donna Tartt estão em uma pilha de livros que a escritora-roteirista mantém junto a seus pés, "como cachorros", para consultar a qualquer hora.
Até a sugestão do título para a obra, que já conta com umas 200 páginas, divididas, por enquanto, em nove capítulos, é uma referência: toma emprestado de Dostoiévski o nome de seu detetive em "Crime e Castigo".
Leitores de "Acqua Toffana", seu primeiro romance (1994), e de "O Matador" (1995) podem pensar que Patrícia bebe apenas na fonte do romance policial.
Pesquisar e escrever
No caso de "O Matador", por exemplo, a inspiração não veio apenas de obras desse gênero literário. Ela foi buscá-la em entrevistas com justiceiros, inquéritos, livros de legistas, dicionários médicos e psiquiátricos e reportagens de jornais num trabalho de pesquisa que durou seis meses. "Desta vez vou ficar muito mais com os clássicos", diz sobre "Porfírio", para confessar logo depois que ela não está entre os que "babam" por literatura policial.
A pesquisa na qual ela mergulhou de cabeça para escrever a história de Máiquel, o matador profissional do título, foi tão exaustiva que acabou travando a sua narrativa.
"Com o material pesquisado em mãos, descobri que a crueldade do homem é muito pior do que se pode imaginar. Para a verdade parecer verossímil, eu tive de acrescentar muita mentira. A verdade pode ser absurda, mas a ficção tem de ser coerente. Por isso o meu livro não é mais violento do que a própria realidade. Ele é apenas mais romântico do que a realidade. O real é imaginativo e fértil, mais até do que a ficção é capaz de ser."
Além do trabalho de pesquisa, Patrícia costuma recorrer também a cadernos de anotações, cada um deles administrado para durar o tempo necessário para ela escrever um livro. "Às vezes pego caderninhos de dois anos atrás e consigo aproveitar uma idéia." Como o diálogo que ela testemunhou entre duas desconhecidas. Uma delas pergunta: "Como você está se sentindo?". E a outra responde: "Estou meio péssima". A conversa acabou entrando em um dos romances de Patrícia.
Segundo a autora, só hoje, depois de sete versões para o livro e de quase oito mil exemplares vendidos, "O Matador" lhe dá prazer. "A ficção é uma vocação para a infelicidade", costuma dizer, furtando outra vez algo de um de seus autores prediletos, o belga Georges Simenon, criador do inspetor Maigret.
Agora, com "Porfírio", para evitar que a realidade dê mais um banho na imaginação, Patrícia decidiu escrever e pesquisar, pesquisar e escrever, tudo ao mesmo tempo. Essa rotina só foi interrompida até agora para que ela se dedicasse à adaptação de obras literárias, de várias delas para o cinema.
Cinema
Fez "O Caso Morel" e "Bufo & Spallanzani", de Rubem Fonseca, para Suzana Amaral e Flávio Tambelini, respectivamente, dirigirem. Adaptou "O Xangô de Baker Street", de Jô Soares, que terá direção de Miguel Farias, e assina também o roteiro de um dos episódios de "Cinco Vezes Nelson Rodrigues" para a produtora Conspiração, do Rio de Janeiro.
É provável que haja um troca-troca de adaptações: Rubem Fonseca é o nome mais cotado para adaptar "O Matador", com direção de José Henrique Fonseca (filho de Rubem) no cinema.
Patrícia acha que não será nada fácil transpor a história do justiceiro Máiquel do papel para as telas. "Todos os meus leitores me dizem que 'O Matador' é supercinematográfico, mas eu nunca pensei no livro para cinema. Parece que adaptar um autor como Rubem Fonseca para o cinema vai ser "piece of cake", mas o fato de a literatura ter esse apelo cinematográfico não significa que será fácil trabalhar na adaptação. Trata-se de uma ilusão. No caso de 'O Matador', como é um livro com narrativa na primeira pessoa, cortada de pensamentos, eu não saberia como resolver tecnicamente essa transposição para o cinema."
Pelo menos duas passagens importantes do livro, em que Máiquel começa a reconhecer nele um assassino, poderiam ter sido editadas no filme "Fargo", dos irmãos Joel e Ethan Cohen. Máiquel em mais de uma situação de "O Matador" faz lembrar o personagem Carl, interpretado por Steve Buscemi no cinema. Os dois personagens não são a caricatura de homens maus, eles cometem crimes quase por acaso. "Eu queria dar essa dimensão humana ao meu matador."
A primeira passagem é a seguinte: "Eu estava mudando, armas mudam tudo. Antigamente, quando saía por aí, só olhava para os meus próprios pés. Não via a rua, as pessoas, o sol, as bancas de jornais, os anúncios, eu só via meus sapatos fodidos, via merda de cachorro, via pontas de cigarro, papel, tampa de refrigerante, lixo. Aprendi a andar depois que passei a usar armas. Esmagar calçadas. Aprendi a olhar para a frente, para dentro das pessoas, os neurônios, o fígado delas. Eu mudei. Eu não era mais aquele homem do início, eu era um matador."
Ou então, o seguinte trecho: "Eu vou te matar porque, a partir de agora, eu sou o matador. Eu sou a grade, o cachorro, o muro, o caco de vidro afiado. Eu sou o arame farpado, a porta blindada. Eu sou o Matador. Bang, Bang, Bang."
Assim é a narrativa do último livro de Patrícia Melo Moraes de Guimarães Barreto, 33: intercala ação e pensamento o tempo todo.
Para ela, há menos sofrimento envolvido quando o objetivo é adaptação. "No caso de roteiros para televisão e cinema, o desafio é mais fácil do que o do trabalho de autor porque já tenho um norte. Por exemplo, o livro é do Jô (Soares), basta ser fiel ao espírito do autor e do livro. No caso de 'Cachorro!', eu não usei uma frase de Nelson Rodrigues, mas o resultado é Nelson Rodrigues puro. Na adaptação já se tem um caminho, já se sabe para aonde ir. Não é como na literatura, onde se trabalha com um idéia que é sua."
Roteiros
Os roteiros foram o ponto de partida da carreira de Patrícia. Ela começou a escrever roteiros em 1985 para telecursos de programas como "Globo Ciência" e "Globo Informática", da Rede Globo. Ficou cinco anos fazendo um "superexercício" com temas educativos antes de se desviar para a ficção, a partir de um convite de Walter Avancini que, na época (1990), estava saindo da Globo e montando um núcleo de dramaturgia no SBT.
Seu primeiro trabalho foi a sinopse para uma novela sobre Anita Garibaldi, que não chegou a ser produzida. No ano seguinte, quando Avancini foi para Portugal, chamou Patrícia para escrever novela para a TV lusa. "A Banqueira do Povo", que contava a história de dona Branca da Silva (personagem conhecido por todos os portugueses na década de 80 por ter criado uma "corrente do dinheiro"), conquistou 70% da audiência do horário nobre.
"Sempre quis trabalhar com cinema e televisão. Nunca pensei em literatura. Mas cinema e TV dependem de muita gente, e nos livros os personagens trabalham para você, de graça. Quando escrevi 'Acqua Toffana', estava cansada de TV, produção, casting, viabilidade. O autor de televisão, cinema ou teatro tem de criar levando todas essas coisas em consideração. Pode ser desgastante assim como a solidão pode ser desgastante para o escritor. O ideal mesmo é intercalar as duas coisas: cinema e TV com literatura."
Traduções
Além do novo romance e das adaptações para cinema, este ano a escritora-roteirista trabalhou nas traduções de "O Matador" para italiano e francês.
Na Itália, o livro saiu pela editora Feltrinelli em junho com o título "Il Killer", e na França, onde será lançado até setembro pela Albin Michel, deve manter o título original, em português. "Os franceses acham que pode soar excêntrico e pegar bem."
Patrícia espera ainda ver sua história publicada em inglês e alemão, talvez o que só aconteça no ano que vem.
Adelina Alletti, tradutora para o italiano, veio ao Brasil para tirar algumas dúvidas pessoalmente com a autora e acabou "internada" no paradisíaco sítio que Patrícia e seu marido, Hugo Barreto, têm em São Francisco, nas proximidades de Monteiro Lobato, Estado de São Paulo.
"O 'Matador' tem um ritmo vertiginoso, mas as tradutoras (de italiano e de francês) captaram essa qualidade e privilegiaram isso, o que me deixou bem tranquila em relação ao trabalho de tradução", diz. Entre as dificuldades enfrentadas por Alletti, Patrícia lembra, por exemplo, que ela não sabia o que fazer quando topou logo nas primeiras páginas com o Mappin porque obviamente a italiana não conhecia a loja de departamentos de São Paulo.
100% São Paulo
Quem lê "O Matador" pensa que Patrícia Melo é uma paulistana porque o livro, segundo ela, "é 100% São Paulo". Os italianos bem que tentaram comprar os direitos de seu romance para o cinema, mas ela está contente que eles tenham ido parar nas mãos de um brasileiro.
"'O Matador' só pode ser filmado num lugar como São Paulo. Não dá para fazer nem no Rio", diz, referindo-se ao fato de Zé Henrique ser carioca e o livro ter como cenário a periferia paulistana.
A autora nasceu na cidade de Assis, interior do Estado. Mora em São Paulo desde 1978, atualmente em Higienópolis, com Hugo, de 41 anos e com quem está casada há oito, e a filha Luiza, 5, por quem tem absoluta adoração.
É trancada em um escritório desse apartamento que Patrícia escreve todo dia, todo o dia. Pára apenas para aulas de ginástica, às vezes em uma academia e outras vezes em casa com um "personal trainer", e aulas de inglês e francês.
Uma vez por semana, à noite, a escritora-roteirista figura no elenco das "terças nobres", ao lado de Marcelo Tas e Pedro Cardoso, com quem disputa partidas de tênis em uma quadra da vizinhança. Pedro, ator da peça "Cinco Vezes Comédia", deve ser premiado logo com um roteiro de Patrícia. "Quero escrever algo para ele." Provavelmente algo engraçado, só para variar.
O humor
"Trabalho geralmente com uma temática muito pesada, e se não tiver um pouco de humor fica intragável porque é violento e cruel demais. O humor ajuda a temperar aquilo, ajuda a ingerir, assim fica mais fácil de engolir", diz. "Sabe uma das coisas que me diz se o meu texto está bom? Para saber se o texto é realmente bom tenho de ler em voz alta e dar risada".
Para ela, o humor está relacionado a gostar de comer. "Você já reparou que uma pessoa anêmica não tem senso de humor?" Ela cita Chesterton ao defender uma religião que tenha como base o humor. "Eu acredito nisso."
Se a medida é essa, Patrícia é humorista de mão cheia. Desde que construiu o sítio em São Francisco resolveu adotar para a culinária o mesmo procedimento que adota para a literatura: a gula, só que de referências e influências.
Em vez de Joyce, Doyle ou Céline, devorou uma coleção de publicações especializadas, com receitas e dicas para cozinhar. "Hoje posso preparar qualquer coisa", afirma com indisfarçável orgulho. Não demora muito e ela já vai estar dizendo a mesma coisa sobre literatura.

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