São Paulo, terça-feira, 30 de julho de 1996
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Com quanto de preconceito se fabricam ídolos

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É por pura ignorância que o Nordeste, a mais discriminada das regiões no cenário social brasileiro, insiste em exportar seu próprio provincianismo racista e discriminatório -que o Sudeste transforma em rentável mercadoria a consumir.
Ignorância, como se sabe, é a carência do necessário conhecimento do valor moral de uma ação e da lei, ou de um fato que cai sob a lei.
Exemplo de Nordeste "for export": esse ET cearense do universo da música popular, o palhaço e cantor chamado Tiririca. Sua canção "Veja os Cabelos Dela", palavrório racista contra uma mulher negra, está sendo motivo de proibição na Justiça carioca, com confisco de CDs inclusive.
Eu nunca tinha ouvido falar do tal cantor até poucos dias atrás, quando escutei os meninos pequenos cantando a canção "Florentina", mistura de cordel com cantiga de roda.
Pela empolgação das crianças, imaginei que a novidade fosse uma espécie de Mamonas Assassinas do Nordeste. Tiririca já é quase um ídolo infantil.
Depois, consultada por uma jornalista alemã, que queria minha opinião sobre o caso da interdição da música, vi que a coisa era grave. É claro que o analfabeto do cantor -"ele é um analfa, mas é engraçado e eu gosto, me disse um menino de 10 anos"- não tem idéia de que se está na era das reparações e da atitude politicamente correta no que diz respeito aos grupos marginalizados.
A ignorância de Tiririca é apenas uma das faces do preconceito brasileiro: a discriminação do marginalizado (o negro) pelo marginalizado (o nordestino). É o mesmo fenômeno que se pode observar no tom do humor feito pelos humoristas que vêm do Nordeste.
Todos eles -de Tom Cavalcante a Renato Aragão e Chico Anísio- são especialistas em ridicularizar homossexuais e os próprios nordestinos.
Esse preconceito grosso, do fraco contra o fraco, não só convive em harmonia com o outro -o da elite econômica branca contra os párias sociais-, como reforça-o.
A imagem do atleta brasileiro, enfocada pela imprensa escrita e televisiva nessa Olimpíada, é exemplo claro do preconceito refinado. No caso específico de atletas mulheres, a discriminação contra negras e homossexuais é evidente.
Não é à toa que a Rede Globo não transmite os jogos do time de futebol feminino do Brasil, que fez "boa campanha", enfim. As moças, masculinizadas, pobres e negras em grande maioria, não satisfazem o ideal estético global das garotas de Ipanema do vôlei.
Jacqueline, jogadora de vôlei de praia a quem o Brasil deve sua primeira medalha feminina em Olimpíadas, não recebeu nem metade da bajulação que receberia Hortência.
Homossexual e rebelada contra os cartolas do vôlei, Jacqueline fica à sombra da adequada e oportunista Hortência -que só é tão ídolo, aliás, à custa da discriminação contra as negras Janeth e Marta.
É típico: no jogo do Brasil contra a China, o grande destaque foi Janeth, mas a TV entrevistou Hortência no final, que nem entrou na partida.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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