São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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Seis pontos do pensamento piagetiano

YVES DE LA TAILLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1936, Jean Piaget publica "O Nascimento da Inteligência na Criança", um clássico com o qual o epistemólogo e psicólogo suíço lança as bases de uma das mais revolucionárias e fecundas abordagens das origens e do funcionamento da razão humana, fato que lhe valeria ser apelidado de "Einstein da psicologia".
A pergunta que Piaget procurou responder neste livro e nos demais foi: como o homem é capaz de criar conhecimentos novos? Dedicou sua vida à pesquisa com criança, não porque estivesse particularmente interessado na infância, mas porque esta fase da vida corresponde justamente àquela em que o homem elabora incessantemente novos conhecimentos sobre o mundo.
Eis, em linhas gerais, algumas das principais teses da obra piagetiana, teses estas retomadas à exaustão em mais de 50 livros.
1) A inteligência é uma adaptação: o bebê, a criança e o adulto desenvolvem formas de agir e pensar de modo a dar conta dos desafios colocados pelo meio natural e social. Um sujeito de qualquer idade que perceba não conseguir resolver um problema (seja por lacunas no seu conhecimento, seja por possuir uma teoria inadequada aos fatos) é capaz de, por um processo de regulação, remanejar suas idéias, criar outras, elaborar hipóteses e testá-las, de modo a resolver seu conflito cognitivo.
2) A inteligência é organizada em estruturas mentais, por meio das quais o sujeito assimila o meio. Tal tese opõe-se à do empirismo, que concede o conhecimento como cópia do real. Para Piaget, pelo contrário, o ato de conhecer é um ato de interpretação, uma assimilação do objeto (de conhecimento) às estruturas mentais do sujeito, a um sistema de significações.
3) As estruturas mentais não são pré-formadas, no sentido de programadas nos genes. Vale dizer que o estruturalismo piagetiano é histórico. Segundo sua própria expressão, toda estrutura tem gênese e toda gênese parte de uma estrutura para chegar noutra. As estruturas são, portanto, construídas pelo sujeito. Daí a expressão "construtivismo", associada à teoria piagetiana.
4) Decorre da tese acima a teoria de Piaget ser necessariamente interacionista: é por meio da interação com o meio que o sujeito constrói suas estruturas mentais e seu conhecimento, sendo ambos os termos indissociáveis. Dito de forma sintética: é estruturando o universo que o sujeito se estrutura. Dois conceitos descrevem o processo: a experiência física e a experiência lógico-matemática. Agindo sobre os objetos, e assim transformando-os, o sujeito abstrai conhecimentos dos mesmos (experiência física relacionada à explicação). Ao agir e transformar os objetos, o sujeito também abstrai as qualidades de suas ações, toma consciência de suas coordenações (experiência lógico-matemática, relacionada às implicações, no sentido lógico da palavra). É deste duplo jogo de abstrações que o sujeito tanto constrói novas estruturas mentais cada vez mais complexas, quanto elabora novas sínteses a respeito dos objetos de seu conhecimento.
5) As raízes do pensamento hipotético-dedutivo (que se desenvolve, em média, na idade de 12 anos) encontram-se já nas ações do bebê, ou seja na inteligência chamada prática ou sensório-motora. Trata-se de uma das teses mais polêmicas de Piaget pois, com ela, nega que a lógica seja filha da linguagem. Debruçando-se minuciosamente sobre os comportamentos de crianças de 0 a 24 meses, Piaget viu neles os primórdios de elaboração do universo (construção das noções de objeto, espaço, tempo e causalidade), base sólida sobre a qual o mundo da representação vai erguer-se. Dito de forma radical: a linguagem depende da lógica, não o contrário.
6) O desenvolvimento da inteligência tem base biológica, no sentido de que a própria estrutura física do cérebro modifica-se em função das experiências do sujeito em interação com o mundo.
As idéias de Piaget dominaram a psicologia da inteligência e do desenvolvimento durante décadas (o grande oponente era o behaviorismo). Hoje, recebem críticas de vários lados, notadamente de estudiosos desta área ainda pouco definida que é a ciência cognitiva.
Para alguns, Piaget ainda é o autor cuja teoria é a mais consistente para explicar os fenômenos da inteligência e do conhecimento. Para outros, ele já está superado. Tais discordâncias são frequentes nas ciências humanas. Ainda é cedo para um balanço definitivo.
As críticas mais contundentes atacam sua abordagem lógico-matemática da inteligência: ele teria sido reducionista ao eleger a lógica clássica como única e grande organizadora da mente humana, tanto no seu aspecto cognitivo quanto afetivo e moral. Hoje fala-se em "múltiplas inteligências" ou em "inteligência emocional". Porém, mesmo que aceitemos uma lacuna de Piaget neste campo, não há dúvidas de que algumas de suas afirmações permanecem recebendo flagrantes comprovações, notadamente sua hipótese de que a organização do cérebro modifica-se em função das interações com o meio (hoje, sabe-se que a plasticidade do cérebro depende da idade do sujeito). Flagrantes comprovações também mostram que, de fato, conhecer é um ato de interpretação, e não cópia de "evidências" supostamente expostas no mundo ou reproduzidas na lousa de uma sala de aula.
É necessário fechar o artigo remetendo-nos à educação no Brasil. E isto, por dois motivos. O primeiro: é entre os educadores que Piaget é mais lido, fato que se explica, em parte, porque foi pela via da educação que as idéias de Piaget entraram no Brasil. O segundo: é frequente e grave o erro de dizer que Piaget foi educador ou pedagogo (a mídia insiste em cometer esse erro).
É verdade que Piaget escreveu algumas páginas sobre educação (nenhum grande pensador furta-se a essa tarefa), porém nunca para dizer o que o professor deve fazer. Ele sempre limitou-se a apresentar sua teoria e assinalar perspectivas pedagógicas plausíveis, sempre insistindo no fato de que nunca se pode, mecanicamente, passar da psicologia à pedagogia. Minuciosas traduções devem ser feitas, sempre acompanhadas de pesquisas. E, no caso da teoria piagetiana, tal esforço vale a pena (e tem sido muito desenvolvido no Brasil): é teoria de notável valia, sobretudo para o professor que pretende promover a autonomia intelectual e moral de seus alunos, para aquele que ainda pensa que a razão humana tem valor.

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