São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A festa do Deus

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O historiador, crítico diletante de teatro, Jorge Coli foi convidado como homem sério que já viu clássicos na Europa a fazer a crítica objetiva, neutra, de "Bacantes", a do ponto de vista de Deus. "Viu" a peça num espetáculo-festa a São Pedro, que explodiu com o júbilo do público de São Paulo anunciando a loucura do Rio, mas não gostou. Não estava cenicamente presente, não "participou". Julgou. Os que estavam, bacanearam. Contraceno olho no olho, quatro horas e meia, com o público. Não vi, naquele último domingo de junho, a cara folclórica do tédio "paulista". Um maracatu entrou de surpresa no final, e o idiota da objetividade, desentendido, confundiu com escola de samba.
Aí o 14 Juillet de 96 trouxe no Mais!, pro "deus do teatro", cravada no meu mito, a cabeça, até então na moita, do nosso fã de ontem, Pentheu linchador de hoje.
Na cola de sua história, como o primeiro de uma série, Coli voltou e deu sua bandeira de ódio sincero. Neste dia, Pentheu assistiu o que a "mídia bacante" lhe conta, vindo do Citerron, sentado numa das duas poltronas que nos restaram do "remoto Oficina". Em homenagem ao historiador que, além de "oferecer" mais esta "surpresa" para o espetáculo, agora encontra seu lugar na história, Coli e sua cola estão xamados a pagar seu ingresso para sentar nesta poltrona instalada sobre um altar, e assim começarmos a comemorar o centenário de Artaud, oferecendo Pentheu e seu duplo. Seus sentadores estarão "à altura", não do caralho onde Dionyzios enraba Pentheu, mas o suficiente para que possam ver, sendo bem-vindos e vistos.
"Traseiros" hoje poderosamente bundando em cátedras oficiais já "vibraram outrora" suas caudas neste estofado de couro azul, como Coli, diante do "Rei da Vela". Não podemos pagar o que perderam, quando viraram Abelardos Segundos, mas vai ser bom pra este público -o que mais nos pentelha e cobra: o do velho Oficina, que deu um sumiço doentio deste lugar-, "voltar". O AI-5 deixou esta alma penada, esta conta por acertar.
Na Grécia os poderosos iam ao teatro espelhar-se, catarsiar-se, desvuduzar-se, cultuando Dionyzios. Até Castelo Branco foi ver o Oficina na ditadura. Então, por que o Brasil da real academia não tem vindo? Medo de ficar pelado? De ser estraçalhado? De ver o que "já viu" e não quer nem pode mais ver, pela pose da posição que ocupa? A volta de Coli trouxe de volta este eterno transtorno.
O que fez o milagre de longevidade do Oficina, posseiro deste eldorado do Bixiga, foi o trabalho com fé no transhumano exu Dionyzios, cultivado e cultuado na gozação do rito agora público das "Bacantes". O Oficina é este pontinho da revolução planetária brazyleira que não se rendeu. Não é "marca" do passado, que continua sendo a bigorna e o nome Oficina (se tivéssemos registrado estaríamos ricos), é nosso eterno presente que é assim fora da moda, porque é a moda a existência deste espetáculo em cartaz. Nossa vida-teatro-vida foi, é e será sempre assim no terreiro do anarquista coroado, onde pratica-se o sonho de curar o Brasil da dominação e da doença dominante dos dominantes: a falta de justiça e de adoração.
O escolhido pelos deuses pra trazer à luz o Pentheu social, Coli, "levantou vôo", graças ao talento de dois atores que o fizeram identificar-se: o "luminoso" Pentheu vestido de mulher e a mãe Agave, que o fez reconhecer a "cabeça" que está segurando. Saiu do armário, mas confessando-se um reacionário clássico, com redação de escrivão, de acácio que vem em tílburi: "Nossos teatros, sob o título de clássicos, sempre nos oferecem outra coisa". "Nossos"? Os que a classe encomenda? Não. Oferecemos, sim, a "outra coisa", "aquilo" que faz Pentheu entregar-se e ficar ainda mais abominável, reclamando a falta de programa (será que é bigodudo?).
Os pentheus não terão mais que pentelhar pelo jornal seus direitos de consumidores, já podemos "oferecer" agora um folder, onde está nomeado o que não "é apenas o Zé Celso". Se fosse, já valia, ser tapume do trabalho de vida de atores protagonistas, coros, iluminadores, técnicos, músicos, figurinistas, aderecistas, cenógrafos, arquitetos, xamãs, poetas, historiadores, criadores deste corpo vivo de desejo coletivo: o Tyaso. Não dá pra nomear todos, senão o Mais! explodia inteiro em chão de estrelas novas.
Por nós, já teríamos à venda no teatro o libreto das "Bacantes". Ficaria mais prático para se passar de espectador a bacante com o livro de missa na mão. Há ex-fãs do "Rei da Vela", Abelardos, que têm editoras que podem editar "speed". Mas miguelam. Por quê? O eterno transtorno.
Nós achamos que o teatro pode participar do banquete da devoração da cabeça dominante da injustiça e da pentelhice, enterrando o herói $Real, o não-vilão Pentheu. Esta entidade faz o que Colis sabem que precisam fazer: a trajetória de qualquer iniciação, teste de teatro ou descabaçamento: serem estraçalhados, esmagados como as uvas, morrer, para virar vinho, e o final é alegre mesmo, "happy end", porque de transmutação.
O texto de Eurípedes (que era muito parecido comigo), segundo "especialistas", é a atualização de um ritual bem mais "remoto" que ele. Nós fomos mais pra trás, pro atraso, pra antropofagia arcaica. Nosso texto é phalado em brazyleiro e é pra boca de todos, como a música dos 25 cantos composta por meu amadorismo de macaca de auditório da rádio Nacional, arranjada e tocada por uma banda que quebrou o tabu da empatação música ao vivo & teatro, vira, somando-se à trilha ópera pra lá de Wagner, ópera de brincadeira, de circo, de carnaval, a que Nietzsche sonhava, festa, onde se dança, se brinca, se torce, se canta afinado e desafinado, se incorpora, se surta, quer você tenha jeito ou não.
Bayreuth é o sublime, Oficina é a dessublimação. Até Pentheus podem decorar as "cantorias", como no santo Daime, e bacanear na pista ou nas cadeiras de madeira, onde poderão amaciar os "traseiros" que não "expõem" em almofadinhas trazidas de casa ou desbundar nelas numa asana, coluna ereta, de corpo ligado, aprendendo um pouco com dona Lina Bardi, antes de xingá-la (ela está morrendo de rir), a ser chique, a não dar trégua ao voyeur profanador cuzão, à falta de classe que a alta classe média paulista cultua. As cadeiras bodeadas entregaram o Pentheu, que sentou nelas. Atenção: as do Oficina não são de Lina, mas de Edson Elito.
"Bacantes" pede mais que uma sentada, "uma adesão ou um pacto": é preciso entrar no labirinto da intriga pela avenida da adoração como tietes e com sentido de justiça da deusa igualitária Cacilda Semelle Becker, neste trabalho que prepara a ressurreição da deusa no teatro do Brasil, doente de desigualdade.
"Bacantes" já antes de Eurípedes é tradução literal de "participantes". O grande público do espetáculo ao vivo são as macacas e não as sobrancelhas levantadas, o pé atrás dos que têm náusea como a "cólica", que diz que é chantagem a inveja que tem dos que gozam ou "fazem" juntos, assistindo quietinhos, vendo a mágica. O ciumento enumera, contabiliza, auto-entedia-se.
O escândalo pelas mídias não é "tão difícil de se conseguir" quanto a superação da reintromissão da língua da censura, disfarçada em crítica de artes e diversões. Doutora Solange, miss censura 68, assinaria este texto: que "interpela" contra "valores libertários".
A Ilustrada fez um relatório burocrático das exigências autoritárias do diretor e das ações "interativas", num caretez de censor dos espetáculos dos 60.
Que a mídia faça a contabilidade, aí o público, por si, vai chegar à carne dos sentidos, do gosto, e vai perder o medo. Zé Simão: se o teu pau encolher, não esfria, tem quem possa esquentar e fazer subir.
"Bacantes" surgiu para nós, o quarteto de ditirisambistas do texto, na época em que se descobriu a Aids, e entra em cena quando se começa a descobrir a cura. Rebebe a "Roda Viva" parida pelo "Rei da Vela", massacrada, como "El Dorado", pelo AI-5, pelas mesmas razões de defesa de Deus, da família, da propriedade, da empresa, do $Real, da garantia do status, que hoje censura "Bacantes". Há um cordão de isolamento contra esta peste. Gente ilustre que tem o que perder, morrendo de medo de cair na tentação de se ver, se expor, agora que o ideólogo Coli já fabricou argumentos para esta cabeça se amarrar, neopentheusinhos cabacinhos encorajam-se a redecretar o eterno fim do que tem medo de experimentar: a loucura da contracultura. Só que agora "Bacantes" é de novo uma loucura que está acontecendo por milagre neste presente 96 que ninguém sabe onde vai dar.
A cabeça deste Pentheu é a mesma dos que estão hoje no poder, dos segundos, terceiros, que impedem uma medida de reconhecimento de justiça social por parte do Estado de São Paulo para o teatro Oficina. Nas "Bacantes", os palacianos usam capas listradas da bandeira paulista. Esta cabeça paulista ainda acha estranho defendermos a bandeira dos sem-terra, diz que estamos "usando", quando é ela que nos mantém na mesma situação precária, recusando-se a negociar um estatuto legal como um comodato, um convênio para o teatro Oficina. A questão desta Bayreuth brazyleira é uma questão social. Cultivo as terras da Jaceguay 520 para a cultura da vida há 34 anos e tenho recebido dos que sentavam nas poltronas azuis o mesmo tratamento que este Pentheu dá no seu artigo, se escorando no meu mito para bater, para aparecer, é de bom-tom crucificar Zé Celso, mostra serviço. Há anos este subtexto, explícito no Mais!, rondava na amizade fingida ao Oficina. Agora que veio à tona, revelando todo o vacilo, traição de uma geração, posso exigir que os pentheus "ofereçam" o que esta Bayreuth tem direito, já que cobram o trabalho do gênio, mas não pagam, como o príncipe Ludwig.
O amadorismo à toa, cabaço, desta crítica de teatro não tem perdão -o historiador devia saber disto-, diante dos frutos do trabalho de 13 anos em torno da peça de Eurípedes. Em que céu está sentado para catedratizar que nossa montagem perdeu a força do original? Teatro só se faz, só se sabe, fazendo, com gente viva ao vivo. Por mais sublime masturbação, uma leitura assim não é teatro, muito menos "o original". Ninguém sabe qual era a força do "original". O original precisa sempre ser inventado, como está sendo na fertilidade da "obstinação" em fazermos o terreiro das "Bacantes", onde balbuciamos, místicos, iniciais, recém-nascidos, ignorantes originais na origem da tragycomediorgya.
Conhecia-se o complexo de Édipo, mas não o de Pentheu. O poder de "Bacantes" fez abrir o jogo. Coli foi a primeira epifania, há agora filas de coliformes, cagando em diarréias do meu nome. Até o intelectual Pinotte Ruy Castro, o biógrafo do "Rei da Vela", deu sua facadinha nesta inquisição.
O texto de Coli é sintoma de uma doença do poder no Brasil de hoje, que o Deus do teatro traz à tona, pra sanar. Pentheu "de terno, gravata, machão, repressor" foi ver a intriga do Eurípedes do Uzona, topou com o Deus do teatro, maconheiro, entendido destas e de outras coisas, mas o que vale na Oficina, é entrar na ação, "pra lá" do bem e do mal. E Coli acabou penetrando pela ação de Pentheu e se "reivelou". A fertilidade que irrigou Eurípedes não deixou ficar só na diz-secação de pequeno-burguês acadêmico e trouxe a visão geral da cabeça que empata. Teatro não é sala de aula para se analisar a "complexidade" dos clássicos, é sertão pra descomplexá-los, revivê-los, procriar, foder com eles, como com quem se gosta, penetrando no jogo com gosto. Nem é vitrine de novidades para "produzir um efeito" para o tédio dos que mamam na besteira chamada gênio. Toda a encenação é mesmo só um "aceno convencional" para o invisível a que só tem acesso quem entra no mar.
Que eu faço diante "disto"? Entre no mar e implore para ser estraçalhado.
Pela ética positivista, não deve ser politicamente correto tocar numa pessoa. Pode enquadrar um assédio trazer para a cena. Mas só vem quem quer, ninguém força ninguém. Os atores transam com pólos elétricos da energia ativa do público e só levam adiante se sentem que o tocado está a fim da brincadeira. Este seria o único ponto a discutir com o "politicamente correto", que não pegou no Brasil, é um chinguinho que deve dar frissons no mundo acadêmico e que, no meio dos que estão fora do $Real, não cola.
Na foto do outro historiador, o estraçalhado mostrado pela Ilustrada, dá pra ver. Agora este tem o saber do que é entrar com o corpo, de que forma o "interesse da história aumenta, quando o corpo entra nu com suas partes genitais" para gerar, para geniar.
O artigo do dia da guilhotina de Paris deu pra cabeça dionyzíaca enjaulada comer a cabeça do poder, do partido do palácio que manda e é mandada no Brasil e que foi tocada um dia pelo trabalho do Oficina, mas hoje está segurando "a cabeça do inimigo".
Aqui no Mais!, em pleno latifúndio da academia, estou xamando a cabeça Pentheu dos acadêmicos do $Real, para que nos porões de sua lobotomização retomem a energia cultural para uma uma despenthelhação e rompam imediatamente o cerco até então mudo, de seca imposta, a produção cultural viva brazyleira e contra o teatro Oficina.
"Dionizos só baixa se houver alguma invocação sincera." Coli tem razão, apesar de não saber o que diz, nem no sentido acadêmico. Eu invoco Baco todo dia, na mentira sagrada da minha vida jogada no teatro. Pra mim, adorador de Dionyzios, do teatro, a "paródia" de uma "ressurreição" vale. "Bacantes" é também, como todo eterno retorno, uma "paródia", e sinceramente acredito até na comédia da ressurreição de tucanos, pinottes e colis.
O deus das cátedras não acredita em nada, esperando o gênio chegar. Só que Dionyzios chegou e trouxe a pontualidade desta contracenação social com Pentheu. Estou entusiasmado. Xamem o deus de dentro fora da "conserva", do estoque de uma "certa disponibilidade", já está vindo na "manha", no "engodo". No "Aurélio", li que "engodo" é isca, adulação astuciosa.
Foi o que Coli, o Pentheu do inconsciente médio burguês, fez pra aparecer num trabalho histórico de milênios. Apareceu, agora apodreça. Na casa do caralho do Oficina, Dionyzios não barra ninguém. Evoé.

Texto Anterior: MONTAIGNE; IÍDICHE; IDADE MÉDIA; NOVOS ESTUDOS; TEATRO; POESIA; CRIME; COUPLAND; MITOS; LANÇAMENTO
Próximo Texto: O fictício milagre japonês
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.