São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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Dicotomias da geografia

WAGNER COSTA RIBEIRO

Entendida ora como um projeto inacabado, ora como superado, a modernidade é sempre motivo para polêmica. A discussão em torno dela envolveu (e deverá continuar a envolver) muitos autores em um turbilhão de idéias que gera controvérsias até para afirmar a sua origem. Ao mesmo tempo, abriga quem repudiou os modelos, como foi o caso da arte moderna, ao lado de quem buscou estabelecer normas gerais, como nas ciências que se afirmam ao final do século 19 ou início do 20. Tal qual as demais ciências institucionalizadas neste clima, a geografia contempla parte das problemáticas modernas, que são analisadas por Paulo Gomes no livro "Geografia e Modernidade", resultado de sua tese de doutorado em geografia na Universidade de Paris 4 - Sorbonne, publicada pela Bertrand Brasil.
A tese central do livro é a de que as assertivas e as crises da modernidade repercutiram nos fundamentos, nos percalços e nas teorias da geografia. Para demonstrá-la, o autor organizou sua obra em três partes: "O debate da modernidade", "A dinâmica dual no contexto da geografia clássica" e "O advento dos tempos modernos".
Na primeira etapa, o autor passeia com erudição (marca que se reproduz por toda a obra) pelos fundadores da ciência moderna para apontar aqueles que seriam seus dois "pólos epistemológicos": "o projeto de ciência forjado no Século das Luzes" e "as contracorrentes", que se assumiriam como oposição ao racionalismo, apoiando-se no subjetivismo. Esta oposição seria um exemplo de construção da ciência moderna: a tensão entre o novo e o velho. Deste constante reconstruir emergiria o mito da modernidade, definida pelo autor como "a renovação dos ritos do 'novo' ".
E a geografia? Paulo Gomes afirma que coube a ela descrever o mundo através de "um discurso científico moderno". Esta produção carregou consigo a dualidade que marcaria a ciência moderna, base da geografia clássica, da geografia moderna e dos diversos processos de renovação da geografia.
Uma dualidade que é identificada nos principais teóricos destes períodos, analisados nas demais partes da obra, bem como nas eternas dicotomias do discurso geográfico, como, por exemplo, cidade/campo e geografia geral/geografia regional.
Os alemães Alexander von Humboldt, Carl Ritter e Friedrich Ratzel, mais o francês Vidal de La Blache, apresentados como geógrafos clássicos precursores da geografia no século 19 e início do 20, são analisados a partir de suas matrizes filosóficas. A Humboldt, por exemplo, o autor credita a concepção de totalidade apreendida segundo os preceitos da observação sistemática, mas também "por um conhecimento imanente, nascido da conjunção do espírito e da natureza". Já em Ritter, a dualidade estaria "na união entre um irracionalismo romântico e uma metafísica cartesiana".
Carl Sauer e Richard Hartshorne, radicados nos Estados Unidos, são expostos como os responsáveis pela transição para a geografia moderna, nas primeiras décadas do século 20. Neste período, a dualidade estaria na tentativa de elaborar um método geográfico que levaria à geografia geral, ao mesmo tempo em que "proclama a irredutível dimensão e importância do estatuto da singularidade, do único no objeto de estudo da geografia". E assim segue a obra, apontando passagens que confirmem a dualidade moderna na produção de diversos autores.
A Nova Geografia, movimento resultado da aplicação da análise de sistemas em geografia, também foi estudada. Neste caso, os geógrafos William Bunge, David Harvey, Peter Haggett, dentre outros que escrevem em língua inglesa, são apontados como críticos à geografia clássica e responsáveis pela renovação quantitativa da geografia. As pesquisas passam a conter uma linguagem científica e a elaboração de modelos é o maior objetivo desta corrente teórica, que teve muita força em meados deste século. Para seus seguidores, a Nova Geografia seria a verdadeira geografia moderna.
Em seguida, Paulo Gomes comenta a introdução do marxismo na geografia, a partir dos anos 60. Karl Marx e Henri Lefebvre estão presentes como os balizadores da produção geográfica marxista. Apesar das demais interpretações do marxismo empregadas pelos geógrafos não serem lembradas, o autor contribui para este debate. Em um diálogo estabelecido com Richard Peet, geógrafo dos Estados Unidos, critica os marxistas no capítulo dedicado ao determinismo, identificando outra dualidade. Ao mesmo tempo em que criticam o determinismo geográfico proposto por Ratzel, segundo o qual as relações sociais são determinadas pelas condicionantes naturais, os marxistas praticam em seus trabalhos um outro determinismo: o econômico. Mais à frente, de volta ao capítulo sobre o marxismo, trata do conceito de formação socioeconômica, bem como do conceito de espaço como produto de relações sociais, também oriundos da influência marxista.
Por fim, o autor aborda o humanismo e a geografia. Os estudos do espaço vivido e a fenomenologia são o foco deste capítulo. No primeiro caso, ressalta a valorização por esta corrente da apropriação das "dimensões simbólicas e estéticas", preterida pela tradição racionalista.
Quanto à fenomenologia, destaca os trabalhos, dentre outros, de Yi-Fu Tuan. A relação entre cultura e espaço estaria no cerne das proposições de Tuan. Paulo Gomes identifica aqui desde "oposições binárias universais (morto-vivo, luz-obscuridade, indivíduo-sociedade)", que confirmariam sua tese, até "profundas semelhanças com o pensamento estrutural de Lévi-Strauss".
Vale ressaltar o esforço de Paulo Gomes em dialogar com as referências tomadas por cada autor analisado. Neste ponto seu livro ganha uma dimensão mais ampla que o da simples reflexão sobre um campo do saber. Ele envereda por temas da modernidade, sistematizando suas fontes e autores. A relação cultura/natureza, o conceito de paisagem, as transformações da vida urbana, dentre outros aspectos, são abordados com precisão. Ao pesquisador alheio ao campo da geografia isto pode parecer uma ousadia. Como alguém pode tratar de tudo isso em uma obra? O autor do livro, refém da própria tradição geográfica, dirige-se para o amplo temário que ela abarca, dissecando suas bases e influências externas com rigor e exatidão.
Entretanto, cabe apontar uma ressalva. Não é encontrada neste cuidadoso trabalho a produção dos geógrafos brasileiros. Apenas "Por uma Geografia Nova", livro do professor Milton Santos (cuja notoriedade ultrapassa em muito o território brasileiro), é citado na bibliografia.
Do nosso ponto de vista, ao menos esta obra deveria ter sido destacada pelo autor, principalmente porque representou uma importante resposta à Nova Geografia. Os demais comentadores que trabalham no Brasil, embora em número reduzido, têm seus trabalhos publicados em artigos e livros de fácil acesso. Perde-se uma boa oportunidade de avaliar esta produção.
Mas este reparo não tira os méritos de Paulo Gomes. Ao contrário, seu trabalho caminha na contracorrente da trilha escolhida pelos geógrafos nos últimos anos. É clara a preferência por trabalhos que buscam analisar as transformações em curso no mundo e no Brasil, como a globalização da economia, a internacionalização dos problemas ambientais, as mudanças do sistema internacional, a volta dos movimentos separatistas, as questões urbanas, o aumento dos sem-terra (rural ou urbana), entre outros temas. A intensa discussão das bases metodológicas da geografia, travada na passagem entre as décadas de 70 e 80, refluiu. Este livro indica que já é hora de retomá-la.

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