São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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Paixões do teatro russo

BORIS SCHNAIDERMAN

Angelo Maria Ripellino (1923-1978) é um dos grandes nomes da eslavística italiana, uma área de estudo em que a Itália trouxe contribuição muito importante. Releio com grande satisfação, agora em português, o seu "Il Trucco e l'Anima" (O Truque e a Alma), publicado pela Perspectiva (que já nos dera, em 1971, "Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda", também de sua autoria).
Depois que o livro saiu na Itália, lançado pela Einaudi em 1965, manifestei meu entusiasmo numa resenha com o título "Uma Epopéia do Teatro Russo" (1). Com efeito, se todas as obras de Ripellino, inclusive os seus trabalho mais eruditos, trazem a marca do ficcionista e poeta que ele foi, este livro particularmente nos transmite algo de épico e monumental, com a sua descrição emocionada de todo um mundo de vivências ligadas com o teatro russo, desde o final do século passado até a década de 30.
Felizmente, a prosa de Roberta Barni, a tradutora, consegue transmitir-nos a garra e a vibração que há no original.
Como parece às vezes estranho, inusitado, e como é grandioso o que Ripellino conseguiu! Os trabalhos universitários, quase sempre, adquirem algo rígido, plúmbeo, devido à necessidade de justificar tudo e documentar as fontes. A escrita informativa e minuciosa das notas acaba geralmente contaminando o texto da obra e desafiando assim a paciência do leitor. Pois bem, Ripellino traz uma documentação riquíssima, exemplar, escreve numerosas notas, mas o seu texto não se contamina com a caturrice universitária e continua vibrante e ágil, como se aquelas notas não existissem.
Aliás, ele tem perfeita consciência disso, pois chega a escrever: "Toda evocação acaba virando narração, todo discurso sobre os outros é sempre um diário disfarçado. A um escritor de histórias distantes pede-se o comportamento de um frio e mecânico gravador. No entanto, ele se apaixona por suas personagens, chora por sua sorte".
Esta paixão do narrador, em pleno trabalho universitário, aparece no livro a cada página, mas tem também os seus momentos de maior exaltação. Veja-se, por exemplo, como ele descreve a grande atriz Komissarjévskaia: "Antes de tudo seus olhos. Os olhos de Viera Fiódorovna Komissarjévskaia. 'Olhos azuis sem fundo', como os da Desconhecida blokiana; largos olhos arregalados e assustados, como nos enigmáticos retratos femininos de Jawlensky. (...) Os olhos e a voz encantadora, que mesmo às frases mais desgastadas dava cadências de melancólica musicalidade, velaturas de sonho".
Às vezes aparece uma nota melancólica, quando Ripellino compara aqueles dias de glória do teatro russo com o cotidiano moderno. Assim, ao tratar da viagem do elenco do Teatro de Arte de Moscou à Criméia, na primavera de 1900, a fim de representar "Tio Vânia" para Tchekhov, que estava muito doente e não pudera assistir à estréia, escreve: "A datcha de Antón Pávlovitch transforma-se no bairro desta multidão abelhuda e barulhenta. Surgiam aos enxames, desde cedo da manhã, dando vida a um exuberante fervilhar de conversas, de charlas, de disputas. Do amanhecer à noite, era um séquito de refeições e lanches, um contínuo vaivém de copos de chá e de zakúski. A alegre festividade de tais banquetes brotava, nos russos daqueles anos, da capacidade que tinham de se arrancharem, de viverem juntos com familiaridade (sem nossa amuada reserva), do ardor de uma hospitalidade transbordante, bagunceira, tão generosa que chegava a ser quase obsessiva".
Há momentos em que o fascínio de Ripellino pela figura e pela obra de Meyerhold parece dominar o livro e, mais uma vez, o toque pessoal e nostálgico se faz presente.
"Não queremos tecer inúteis hagiografias -é certo, porém, que todo o teatro convulso, dinâmico, anti-respiratório da época, o teatro em que a direção torna-se agressão, pretexto de barafunda, danada acumulação de truques, provém do exemplo meyerholdiano.
Cada homem tem uma época eleita, uma espécie de 'âge d'or' pessoal. Henri Miller, em 'A Devil in Paradise', lamenta não ter vivido em Paris nos dias de Apollinaire e de Rousseau. Nós teríamos gostado de viver em Moscou nos tempos de Meyerhold".
Se esta presença de Meyerhold parece soberana, nem por isso o autor deixa de nos transmitir imagens muito vivas de Stanislávski, Taírov, Vakhtangov, Sulerjítzki e de tantos mais. Mas o encantamento com que ele os descreve torna ainda mais sinistro o desabar daquele mundo, com a instauração plena do stalinismo. E é com um sentimento de horror que Ripellino trata esse tema.
Enfim, temos aí um dos raros exemplos em que um trabalho universitário nos transmite o frêmito de uma época em seus momentos de máxima expressão.
É preciso frisar também que ele estuda o seu tema sem o isolar da vida cultural da época, sem o desvincular das referências italianas, francesas, alemãs e outras, mas sobretudo tchecas e polonesas. Sua vivência pessoal em Praga se faz então bem presente e torna possível um confronto muito interessante.
Sendo um livro tão pessoal e, às vezes, tão marcado pelas idiossincrasias do autor, suas opiniões, muito bem fundamentadas, prestam-se, no entanto, até hoje a muita discussão. Outras vezes, ele aponta algumas pistas ousadas, sugerindo um detalhamento que outros poderiam fazer. É o caso, por exemplo, de sua suposição sobre as possíveis origens russas do "teatro sintético" de Marinetti.
Diante desta pesquisa tão vasta e de um estudo tão sério dos materiais existentes na época, surge inevitavelmente a pergunta: o que não faria ele se tivesse vivido mais alguns anos e consultado fontes completamente desconhecidas quando o livro foi escrito? Mas o passar dos anos apenas confirmou algumas de suas corajosas especulações.
Por exemplo, ao referir-se ao pedido que Meyerhold fez de concessão da nacionalidade russa (filho de alemães, nascido na Rússia, era para todos os efeitos alemão, segundo a legislação do regime czarista) e à sua aceitação da religião grego-ortodoxa, com mudança do nome Karl Theodor Kasimir para o russo Vsiévolod, Ripellino escreve: "Foi esta a primeira de suas numerosas metamorfoses". Pois bem, os documentos que vieram à tona com a "glasnost" apenas confirmaram o exato desta afirmação. Basta, neste sentido, lembrar que seu devotamento à segunda mulher, Zinaída Raich, o fez assumir o sobrenome de Meyerhold-Raich, e este figura na ata de seu fuzilamento como "inimigo da pátria" (2).
É com alegria e emoção que releio, agora em português, esta obra de um amigo distante no tempo e no espaço, e que acompanhou com a maior simpatia e participação o que fazíamos na época no Brasil. Esta fruição se torna ainda mais intensa devido à fluência e vigor do texto traduzido. Deixando de lado alguns pequenos senões que ali aparecem (afinal, quem pode se considerar livre deles?), entreguemo-nos ao convívio com este livro excepcional, que torna tão viva a presença de Ripellino, cuja personalidade e obra são ressaltadas, ainda, num prefácio muito bom, assinado por J. Guinsburg e pela tradutora.
Notas:
1. Boris Schnaiderman, "Uma Epopéia do Teatro Russo", na seção "Letras Russas" do "Suplemento Literário" de "O Estado de S. Paulo", 3/9/1966, depois incluído em meu livro "Projeções: Rússia/Brasil/Itália", São Paulo, Perspectiva, 1978.
2. Tomei conhecimento deste fato graças a materiais que me foram cedidos por Reni Chaves Cardoso Zacchi, pesquisadora infatigável da história do teatro russo moderno.

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