São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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Premissas da ciência moderna

FÁTIMA R. R. ÉVORA

Os historiadores da ciência dos séculos 18 e 19, talvez motivados pelo mito de que a "Idade Média teria sido uma longa e tenebrosa noite dos mil anos", consideravam que nada de significativo havia sido produzido no domínio das teorias científicas, no período que separa a Antiguidade dos séculos 16 e 17. A ciência natural, acreditavam eles, teria começado no século 17, com a revolução galileano-cartesiana, ou quiçá no século 16, com a revolução copernicana. A "ciência medieval", se houve alguma, teria sido, no máximo, um apêndice menor da ciência grega. Esta postura começou a alterar-se no final do século 19 e começo do 20, com os trabalhos de filósofos e historiadores da ciência como Pierre Duhem e Emil Wohwill.
Wohwill, já em 1883, conjectura que a descoberta da lei de inércia -que está no cerne da revolução científica dos séculos 16 e 17- teria sido precedida pela teoria do "impetus", mas que devia haver uma tradição mais antiga desta teoria que passaria pela Idade Média latina e árabe, chegando até os gregos. Seguindo referências do próprio Galileu e de alguns de seus contemporâneos, Wohwill aponta o cristão neoplatônico João Filopono de Alexandria (século 6) como a fonte mais antiga da teoria do "impetus". E defende que haveria uma continuidade no desenvolvimento dos conceitos de força cinética imprensa e incorpórea, presentes nos textos de Filopono, e o moderno conceito de inércia.
Também Duhem partilha das teses de Wohwill com respeito à continuidade no desenvolvimento da física medieval para a física moderna. Ao reconstruir a história da mecânica medieval, Duhem encontra nos textos mecânicos e cosmológicos dos filósofos naturais do século 14, particularmente nos de Jean Buridan (?1300-1358) e Nicolas Oresme (?1323-1382), ambos pertencentes à Escola Nominalista de Paris, elementos que lhe pareciam extremamente modernos e argumenta que as idéias essenciais dos princípios básicos da física de Galileu já estavam presentes no século 14.
A publicação das idéias de Duhem e Wohwill causou uma enorme polêmica entre os historiadores da ciência, que acreditavam que as descobertas de Galileu e Descartes constituíam uma ruptura com o passado medieval. Esta polêmica se estende até nossos dias, sob uma nova roupagem e com alguns elementos novos. Diversos historiadores da ciência ao longo destes anos, embora sem defender integralmente as teses continuístas de Duhem, uniram-se a ele reconhecendo que estava certo ao perceber nas idéias científicas do século 14 os germes da ciência moderna, mas criticam-no por considerar que frequentemente interpretava textos medievais em um sentido moderno, negligenciando o contexto em que estas idéias foram desenvolvidas e os princípios metafísicos que lhes davam significado.
Uma reavaliação e revisão radical dos trabalhos de Duhem e Wohwill tem sido feita nos últimos 50 anos, a partir de um trabalho sistemático de edição de textos do pensamento científico antigo e medieval e de análise dos seus conteúdos. Contudo, até a década de 60, comparativamente, realizaram-se poucos estudos sobre o pensamento científico do período que separa os nominalistas parisienses e Galileu. É neste contexto que surge o livro "Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano", escrito pelo estudioso e erudito Eugenio Garin, cuja primeira edição italiana data de 1965. Garin dedica não apenas este livro, mas também vários de seus artigos, a mostrar em que medida o humanismo, que floresceu e se desenvolveu, a partir do final do século 14 e começo do 15, na Itália, e se estendeu ao Norte, foi de fundamental importância para o desenvolvimento da ciência moderna. O próprio Garin, no entanto, reconhece que existe uma enorme divergência entre os historiadores da ciência com respeito a esta sua tese. Alguns estudiosos, embora reconhecendo a importância ético-política da atividade dos humanistas, consideram que ela foi nociva para o desenvolvimento do pensamento científico.
Garin, por sua vez, recusa toda e qualquer reconstrução histórica que apresente a ciência do século 17 "como o último parágrafo do saber medieval, esvaziando a importância de parte da obra dos séculos 15 e 16" (pág. 9). De acordo com Garin, o que está no cerne do nascimento da ciência moderna, como escreveu Koyré, não é a crítica a certas teorias erradas e a troca destas por outras melhores, mas antes a destruição de um mundo e a substituição deste por outro; o que os fundadores da ciência moderna fizeram foi reformar a estrutura da nossa própria inteligência e elaborar um novo conceito de conhecimento e de ciência. Isto, no entanto, segundo Garin, não foi, nem poderia ter sido, feito pelos físicos da Idade Média tardia.
Embora Garin pareça reconhecer o caráter muitas vezes "erosivo" das teorias dos físicos medievais -que, retomando os argumentos usados pelos comentadores antigos, colocaram em questão determinados aspectos da física aristotélica, e que, "retomando Filopono, liquidaram a tese do meio como causa do movimento"-, elas constituíam, segundo ele, peças críticas isoladas, destinadas a permanecer estéreis. "Não apresentam propostas eficazes nem para renovar o seu método de pesquisas, nem para destruir-lhe os fundamentos, nem para delas extrair novas teorias de conjunto (...), os maravilhosos esforços intelectuais dos físicos do fim da Idade Média, permanecem sempre aprisionados nos quadros do aristotelismo e dos seus equívocos" (pág. 150).
O movimento humanístico, que desabrochou nas cidades italianas entre os séculos 14 e 15, propiciou a retomada do saber antigo e, junto com ele, o da axiomática arquimediana. Segundo Garin, o que permitiu a Galileu propor uma física livre das barreiras do peripatetismo, não foi o seu conhecimento das teorias dos físicos medievais, mas antes a sua aceitação da axiomática arquimediana fundada sobre a "aceitação da funcionalidade da linguagem matemática enquanto instrumento de compreensão adequada da realidade natural" (pág. 152). Foi também a sua aceitação de um novo sistema de mundo, isto é, a teoria copernicana, que pressupõe o rompimento com o cosmo hierarquicamente ordenado da tradição aristotélica, dividido em duas regiões nitidamente distintas, celeste e terrestre, ocupada por materiais distintos e governada por leis distintas.
No entanto, os novos métodos e horizontes, a renovação de leitura, com a retomada do patrimônio científico grego, que caracteriza a chamada "Renascença" ou "Humanismo" ocorreu, segundo Garin, fora da universidade: "do século 14 ao 16, a nova cultura não segue os movimentos da Universidade, nem triunfa nela; (...) Claustro e chancelarias, cortes e 'academias', ou seja, livres redutos de eruditos que se tornavam os centros do novo saber; (...) Instrumentos essenciais à nova ciência, como Arquimedes, aparecem por meio da atividade dos cultores do grego, da iniciativa dos mecenas, da curiosidade dos literatos enciclopédicos, como Giorgio Valla" (págs. 141-2). A retomada do patrimônio científico grego, segundo Garin, foi portanto impulsionada pelo movimento humanístico, que, por sua vez, partiu da "vida civil em direção aos vários campos do saber".
O que Garin parece não perceber é aquilo que E. Moody já havia mostrado em um brilhante artigo, de 1951: que é o ideal de uma dinâmica matematicamente demonstrada que Galileu toma de Arquimedes, mas não a dinâmica em si. Importantes passos em direção à física moderna pressupõem passos anteriores dados por Filopono, Avempace, Buridan, entre outros.
Este livro de Garin é uma coletânea de seis ensaios que, segundo o autor, nasceram como conferências, ou seja, "com limites definidos". Suas limitações são minimizadas graças às notas que apresentam evidências materiais para suas afirmações. No entanto, tendo em vista a amplitude dos temas tratados, algumas questões carecem de uma argumentação mais sólida e mais bem desenvolvida. Um extenso prefácio contribui para uma melhor compreensão dos artigos que seguem. Sem dúvida, é bem-vinda a tradução para o português de um texto que traz a penetrante e erudita análise de Garin sobre a importância do movimento humanista para o nascimento da ciência moderna.

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