São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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A recepção atual de Florestan

RICARDO MUSSE

Na forma de dossiês, três revistas organizaram, quase simultaneamente, homenagens a Florestan Fernandes. O critério de escolha dos articulistas também coincide: um ou outro companheiro de geração, um ou outro estudioso da obra e vários ex-discípulos. Como não poderia deixar de ser, há inevitáveis repetições de autores, mas não de textos, a não ser no caso de Octávio Ianni que enviou o mesmo artigo para as três publicações. Apesar da identidade de propósito -a composição de um painel representativo da diversidade de interesses teóricos de Florestan-, a interação entre os dossiês está mais próxima da complementação do que da superposição.
Antonio Candido, em artigo na revista do IEA relembra o companheiro de trabalho, assistente, como ele, de Fernando de Azevedo. Ao ressaltar a especificidade do jovem Florestan, o artigo sugere uma descontinuidade, melhor clarificada no outro texto de Candido (na revista da ANPOCS) que toma a pesquisa sobre o negro encomendada pela Unesco como momento de viragem. Este trabalho, feito em colaboração com Roger Bastide em 1949-51, e a oportunidade de vincular teoria e prática, teria agido como uma espécie de catalisador, levando-o a uma síntese original. Nas palavras de Antonio Candido, "a sua forte impregnação marxista, que era uma linha ainda paralela, transformou-se numa espécie de dominante, que atuou como magneto, como poderoso magneto que lhe permitiu reordenar de maneira pessoal a contribuição de outras fontes, agora subordinadas: a durkheimiana, a weberiana e a funcionalista".
José de Souza Martins comparece com três artigos. Um -na "Revista USP", voltado à compreensão do papel das "histórias de vida" enquanto instrumento de produção de conhecimento na sociologia de Florestan- ilumina uma parcela não insignificante da obra, em particular seu último livro "A Contestação Necessária" (Ática). Outro, na revista do IEA, reflete acerca da interrupção da tradição sociológica na USP motivada pela cassação de Florestan e equipe. A tese, polêmica, de Martins é que ambos perderam: a universidade, sem o anteparo do projeto e da presença de Florestan, desviou-se rumo a uma sociologia colonizada, voltada para temas importados e de moda; a equipe de Florestan, sem as amarras da vida acadêmica, submeteu-se às urgências e limitações de demandas restritas em institutos de pesquisa privados (leia-se Cebrap) com a subsequente perda de tensão teórica. Nos dois casos abriu-se caminho para uma partidarização da sociologia.
Essa posição de princípio, a defesa de uma sociologia comprometida com a sociedade, mas supra ou apartidária, decorre em larga medida da compreensão que Martins tem de Florestan. No terceiro artigo, na revista da Anpocs, dedicado a um balanço teórico da obra, ele sustenta que Florestan foi até o fim da vida, mesmo enquanto publicista e deputado, essencialmente um acadêmico. Essa afirmação, diametralmente oposta à posição de Candido, assenta-se na tese de que o fulcro central do pensamento de Florestan, o conceito de "disnomia" decorreria de uma ampliação, pela inclusão de Marx e Weber, do conceito durkheimiano e funcionalista de "anomia". Assim, o marxismo é que se submeteria à sociologia, enquanto "orientação interpretativa que cabe em algumas circunstâncias e em relação a algumas questões, mas não em outras".
Qual o verdadeiro Florestan? Um boa pista para responder a essa questão é fornecida por Maria Arminda Arruda num artigo da revista da Anpocs que retoma em larga medida as teses de Gabriel Cohn expostas em "Inteligência Brasileira" (Brasiliense) e "O Saber Militante" (Unesp/Paz e Terra). Arminda salienta a dualidade entre o projeto de uma sociologia de cunho acadêmico -a preocupação em delimitar o campo da sociologia em relação a outros domínios e em oposição às interpretações tidas como não-científicas- e a dimensão crítica das análises. Cohn explora a tensão entre o cientista e o militante, o controle racional sobre a sociedade e o anseio de democracia e cidadania. Nessa chave a junção entre as diversas influências teóricas -Durkheim, Weber, Marx, Mannheim- não se dá sob a forma de subordinação, mas como um "ecletismo bem temperado". Outra consequência dessa interpretação, também retomada por Arminda, é a adoção da noção de "ordem social competitiva" como conceito central da obra, o que permite entender não só a preocupação de Florestan com a transformação social, mas sobretudo com os entraves à modernização.
O outro artigo de Maria Arminda, na "Revista USP" complementa a análise de "A Revolução Burguesa no Brasil" apenas esboçada em seu notável ensaio sobre a sociologia paulista ("História das Ciências Sociais no Brasil, vol. 2). A descrição minuciosa dos capítulos e a investigação das fontes teóricas que os informam desmentem por si só a tese de uma unidade teórica perpassando a obra de Florestan. Atestando a centralidade desse livro na recepção contemporânea de Florestan, Miriam Limoeiro Cardoso dedica toda a primeira parte de uma pesquisa em andamento (publicada na revista do IEA) ao estabelecimento da gênese de um dos seus principais conceitos, a noção de capitalismo dependente.
Os demais artigos elucidam aspectos particulares da obra multifacetada de Florestan. Roberto Cardoso de Oliveira e Roque de Barros Laraia ("Revista USP" e revista da Anpocs) recortam o antropólogo. Partindo do mesmo pressuposto -que este constitui o lado menos conhecido da obra-, elaboraram artigos similares dedicados sobretudo ao mapeamento e à apresentação dos textos mais diretamente antropológicos de Florestan. João B. Borges Pereira ("Revista USP") trata da questão racial, do estudo da situação dos negros entre nós, iniciado por Florestan a partir da pesquisa da Unesco e que teve o seu ápice no livro "A Integração do Negro na Sociedade de Classes". A novidade da tentativa de compreender essa situação pela ótica das estruturas sociais marca, segundo Borges, uma ruptura em relação aos estudos anteriores que tomavam o negro ou como "expressão de raça" (Nina Rodrigues) ou como "expressão de cultura" (Artur Ramos).
Demerval Saviani (na revista do IEA) destaca o pensador da educação por meio de uma cuidadosa seleção e recensão dos principais textos de Florestan atinentes ao assunto, enquanto José Jeremias Oliveira Filho ("Revista USP") debruça-se sobre a reflexão metodológica de Florestan. Contesta -com êxito- a versão que o toma como um sociólogo empirista e naturalista. Mas não convence ao tentar contestar também os seus vínculos com o ecletismo e o positivismo.
Tanto a "Revista USP" quanto a "Estudos Avançados" trazem, além de ensaios fotográficos, textos inéditos de Florestan. A "Revista USP" publica uma prova escrita sobre o tema "a família patriarcal e suas funções econômicas" e um discurso proferido na Maria Antônia que trata, entre outros temas, da situação da ciência e da tecnologia numa época de globalização acentuada do capital. A revista do IEA edita uma seleção das cartas de Florestan a Barbara Freitag, que se torna desde já um documento imprescindível para a compreensão da sua vida e de sua obra. Em alguns momentos Florestan assume um tom mais pessoal e franco do que nos seus depoimentos "oficiais" à revista "Trans/form/ação", vol. 2, (Unesp) e "Novos Estudos Cebrap", vol. 42.
Embora sejam inegáveis a qualidade e a extensão dos temas abordados, a reflexão sobre a obra de Florestan ainda está em seus primórdios. Falta -apesar dos esboços de Candido, Arminda e Ianni (na revista da Anpocs)- situá-la melhor na tradição intelectual brasileira, nos moldes do artigo de Aníbal Quijano (na revista do IEA) que o insere no quadro da sociologia latino-americana. Torna-se também cada vez mais imprescindível pensar nos seus resultados práticos. Apenas um exemplo: é verdade, como alude de passagem Martins, que o programa de governo de seu discípulo FHC é o mesmo do projeto, de 1962, "Economia e Sociedade no Brasil"?

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