São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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Um rascunho de Freud

RICHARD T. SIMANKE

Em setembro de 1895, ao retornar a Viena após uma visita a Wilhelm Fliess em Berlim, Freud inicia, ainda no trem, a redação de um trabalho ao qual vinha se referindo com certa regularidade na correspondência trocada com seu principal interlocutor na época. Este trabalho, o "Projeto de uma Psicologia" será, em dois meses, abandonado incompleto, para só reaparecer mais de 50 anos depois. Mas, desde então, tem ocupado um lugar de destaque no cenário dos estudos sobre a obra freudiana, tendo se convertido numa referência quase obrigatória quando o assunto é o sentido e o espírito deste corpo de conceitos que Freud veio a denominar "metapsicologia".
O "Projeto" consiste, talvez, na mais ambiciosa tentativa empreendida por Freud de formular uma psicologia de alcance geral, que desse conta não só dos fenômenos patológicos que eram o objeto imediato de suas preocupações, mas da totalidade dos fatos da vida psíquica, aí incluídos os da normalidade.
Ao mesmo tempo, era preciso que esta psicologia cumprisse os requisitos do "materialismo" e do "naturalismo", que integravam o credo científico do qual Freud nunca se desgarrou totalmente ao longo de sua trajetória intelectual, como é possível verificar pela simples leitura atenta de seus últimos escritos; porém, ao contrário da maioria das psicologias e das teorias médicas então vigentes, recusou, igualmente, a saída mais cômoda de deixar de fora da investigação aqueles problemas refratários a uma abordagem desse tipo, cujo melhor exemplo é o "problema da consciência".
O resultado é essa tensão interna -entre as premissas e o objeto da investigação-, que dá ao "Projeto" sua coloração particular e que, se por um lado pode ter contribuído para o abandono da empreitada, por outro ajudou a fundar o estilo próprio da teoria psicanalítica, onde essas ambiguidades nunca deixaram de se fazer presentes.
Assim, o problema da "quantidade", cuja importância tinha sido intuída nas investigações clínicas dos anos precedentes, vai ser trazido para o primeiro plano e situado na origem da teoria de um aparelho neuronal (antepassado do "aparelho psíquico" posterior), cuja função primordial é lidar, da melhor forma possível, com a estimulação recebida, permitindo a descrição de uma economia interna que nunca vai abrir mão da referência à face energética dos processos psíquicos, uma energética que não tem nada de mitológica ou metafórica, como já se disse por aí, mas que, ao contrário, enraíza profundamente a concepção freudiana do psiquismo em sua base vital. Quando, na passagem para "A Interpretação dos Sonhos" (1900), o vocabulário neurológico do "Projeto" é substituído por uma terminologia mais psicológica, é a renúncia a estabelecer correspondências "anatômicas" -e nada mais- que se arremata nessa substituição, renúncia que, de resto, já começara a ser estabelecida desde a monografia sobre as afasias em 1891.
Mas seja qual for a medida em que as teses do "Projeto" se mantenham, sejam substituídas ou revistas na obra posterior de Freud, permanece o fato de que se trata de um texto de difícil acesso, não só por sua natureza de rascunho e sua complexidade, mas pelo seu caráter de obra de transição, onde os contornos da psicanálise, enquanto disciplina, ainda não estavam firmemente delineados.
Daí o valor de uma edição crítica, como esta nova tradução, onde um extenso e iluminador conjunto de notas permite -salvo por alguns cochilos da revisão- orientar o leitor pelos meandros do texto, explicitando e justificando as opções de tradução (sempre polêmicas quando se trata de Freud) e esboçando o quadro de uma leitura filosófica da obra, para além dos parentescos usualmente apontados pelas diversas escolas.
Obtém-se, assim, um instrumento suplementar de leitura e análise que, ao mapear a gênese e as implicações dos conceitos, fornece elementos para se pensar a significação do texto para o empreendimento freudiano e a maneira pela qual as idéias aqui rascunhadas sobreviveram e permearam a obra posterior e em que grau anteciparam suas realizações.

Richard Theisen Simanke é professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar)

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