São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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Ato de fé nas pesquisas eleitorais e similares

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Metade por temperamento, metade por cálculo ou convicção, nunca fui dado a ter visões. Apesar disso, conheço dois casos dos quais não posso duvidar, uma vez que são exemplos próximos e domésticos.
Tenho um primo que desde a mais tenra infância era dado a ver coisa. Não jogava peladas nem bola de gude: seu único e nobilíssimo esporte era ter visões.
Via coisas, o menino, nas nuvens, nas árvores, nas ondas, nas areias da praia. A princípio, eram coisas inocentes, que não cheiravam nem fediam.
Até que um dia ele se superou e viu nada menos do que Santa Teresinha do Menino Jesus nuns bambuais que havia lá pelos fundos do nosso quintal.
Foi um pasmo e, sobretudo, uma edificação. Andou-se na ponta dos pés naquela tarde, falava-se baixinho, em tom de prece, para não prejudicar o clima de santidade, de êxtase, de santuário que tal visão trouxe a todos, sobretudo ao primo.
Uma vizinha, que era conhecida pela virulência de sua língua, foi das primeiras a aceitar o sobrenatural evento: jurou que sentia cheiro de incenso no seu quintal, em sua casa, na rua, na cidade, no mundo.
Veio gente de fora, vieram outros guris ver a touceira de bambu onde os pés da miraculosa santa haviam docemente pousado.
Até o vigário do Lins se deu ao trabalho de comparecer e ali se ajoelhar, pedindo proteção para suas ovelhas.
O único que não deu muita bola para a visão fui eu mesmo: conhecia de sobra a fama daqueles bambuais, sabia o que os meninos assim-assim iam fazer lá.
Na iminência de ser apanhado em flagrante, o primo se desapertou e garantiu que não estava em posição suspeita, ele apenas se prostrara para melhor venerar Santa Terezinha do Menino Jesus.
O fato é que acreditaram nele. E, o que foi pior, o próprio primo acabou acreditando em si mesmo. Para todos os efeitos, ele ficou sendo um iluminado, um ser translúcido, um eleito, um predestinado à corte do céu e à glória dos altares.
Corte rápido para um compadre, Franklin Magalhães Sobrinho, ex-diretor de um departamento dos Correios e Telégrafos, homem boníssimo, pai amantíssimo, essas coisas.
Esse via discos voadores em toda parte, a qualquer hora, por qualquer ou sem qualquer motivo.
Dava de ombros se alguém duvidasse de sua intimidade com seres extraterrestres.
Raro, raríssimo o dia em que não comunicava aos amigos mais chegados: "Hoje, ali naquela dobra do Corcovado, um disco voador apareceu e me convidaram para dar uma volta".
Explica-se tal e tamanha intimidade: um dia, o compadre deparou-se com um disco voador estacionado em frente à porta de seu edifício, na rua Santa Clara, em Copacabana.
Era uma nave espacial sofisticadíssima, compacta, de bolso, pouco maior do que um Fusca.
O compadre acordava cedo todos os dias para ir comprar o pão fresquinho numa padaria da Toneleros. Não havia ninguém na rua. Ele acenou jovialmente para um dos tripulantes como se fosse o leiteiro, o jornaleiro da esquina. Recebeu o primeiro convite para dar umas voltas.
Franklin Magalhães Sobrinho não aceitou. Sofria -como todos sabíamos- de hereditária labirintite e temia passar mal num veículo espacial que anda rodando, ou melhor, que roda em torno de si mesmo para ir em frente -segundo o próprio compadre me explicou com detalhes que esqueci.
Bem, esta semana, começando a ficar preocupado com a sucessão municipal e com as pesquisas que estão sendo feitas e anunciadas, indaguei ao primo e ao compadre, separadamente, se já tinham visto, por acaso ou propósito, algum pesquisador, um desses caras que andam perguntando o que a gente acha disso ou daquilo, qual a novela que estamos vendo, o sabonete que usamos e em quem vamos votar ou não votar.
Primo e compadre juraram que jamais haviam visto um pesquisador.
O primo fez cara escandalizada, ele não gastaria suas visões em cima de personagem tão profano.
O compadre nem sabia ao certo o que era um pesquisador, pensou que se tratava de um vendedor de prestação -daqueles que antigamente andavam de porta em porta oferecendo tecidos, jóias e perfumarias, ancestrais do crédito direto ao consumidor.
Não sei se a falha é do primo ou do compadre, juntos ou separadamente. Ou se a culpa é mesmo dos pesquisadores, que não existem. Eu também nunca tive a honra de botar meus fatigados olhos em cima de um deles -o que não chega a provar coisa alguma, pois tampouco vi Santa Terezinha do Menino Jesus e muito menos um disco voador.
Invoco a autoridade do primo e do compadre, propícios a verem coisas maravilhosas. De maneira que estou sem saber se fico com a experiência deles ou com as complicadas tabelas e cruzamentos fornecidos pelos institutos especializados.
Lembro o caso do Joel Silveira. Ele estava vendo TV quando bateram à sua porta. Alvíssaras! Era um pesquisador. Queria saber a que programa ele estava assistindo. Joel pediu um minuto, foi ao quarto, desligou o aparelho, voltou à porta e informou: "Nenhum".

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