São Paulo, sábado, 10 de agosto de 1996
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'Quartett' agora é teatro de respeito

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Edílson Botelho, da Cia. de Ópera Seca, agora é um intérprete do verbo.
Aliás, até mais do que interpretar, o que faz é explicar o texto do autor alemão Heiner Mueller, "Quartett", na montagem que estreou anteontem em São Paulo.
Sobretudo na segunda metade do espetáculo, quando surge menos tenso, o ator fala pausadamente, dá o sentido e a emoção de cada palavra, de cada frase. Casa a forma do verso com seu conteúdo.
Quem poderia imaginar, depois de conhecer Mueller pelas montagens dos anos 80, ou ainda, da virada dos anos 90, que o dramaturgo ganharia uma versão tão aceitável, tão correta, e logo de quem, Gerald Thomas.
A morte, recente, entronizou Heiner Mueller entre os autores respeitáveis.
Até quando Valmont e Merteuil trocam as suas ofensas finais, em diálogo antológico, o texto é o mais correto. Em vez de "eu sou uma merda, quero comer a sua merda", ouve-se "excremento".
Não apenas da parte de Edílson Botelho, mas também e principalmente de Ney Latorraca, que troca com ele os personagens de "Quartett", as atuações são as mais tradicionais.
À exceção do início tenso de ambos, não há nada das máquinas, dos bonecos manejáveis de outrora, que faziam das palavras antes um ruído ao fundo, parte da sonoplastia.
Ney Latorraca chega a apresentar-se naturalista, com rasgos de humor popular, bem próprio dele.
Por outro lado, a cenografia, antes unanimidade nas montagens thomasianas, agora se aproxima perigosamente do kitsch, com suas paredes de calabouço e seus ternos relacionados a carne de frigorífico.
Criada por Luciana Bueno, a cenografia repete elementos de peças anteriores, mas estranhamente pasteurizados, domesticados, óbvios até.
Agora, estranhamente, soando mais como sonotécnica de algum antigo desenho animado.
*
Gerald Thomas segue, de certa maneira, o trajeto de Heiner Mueller.
Muito polêmico, atacado nos anos 60, ele se tornou o dramaturgo oficial da então Alemanha Oriental a partir dos anos 70 -com o seu teatro fragmentário na forma, mas corretamente histórico na matéria.
Acompanhou assim, em versão comunista, a crescente supremacia de artistas de mesma linha formal, no Ocidente, caso de Robert Wilson.
Em "Quartett", que é de 1982, apesar de uma maior atenção ao estudo psicológico, o que se tem é sempre e sobretudo a luta de classes, a crítica, em forma de grito, à dominação social.
Mais até, o que se tem é um ambiente opressivo, de revolução encarquilhada, com referências à ameaça de terceira guerra e apitos de recolher. Na rubrica, para cenário e época, sugere "bunker depois da Terceira Guerra Mundial".
É um teatro que espelha o muro de Berlim, quando ainda existia -sendo ele, ironicamente, um autor que podia entrar e sair à vontade.
(A propósito, vem daí uma observação minha, quanto a Heiner Mueller, a quem chamei de derrisório, em crítica de anos atrás, o que causou uma reação tal que entrou como parte de um processo na Justiça.
A observação foi resposta à descrição dos diálogos do autor, por Fernando Peixoto, um crítico essencial dos anos 60, ex-membro do PCB e o introdutor de Mueller no país, como derrisórios.
Como antes, ainda acredito que, certamente mais do que os seus diálogos, as suas peças, é Heiner Mueler, com tal biografia, quem provoca derrisão, ou riso.)

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