São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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O fim da era dos profetas barbudos

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chega ao Brasil nesta semana o historiador norte-americano Robert Darnton. Ex-jornalista e atualmente um dos mais conhecidos historiadores do século 18, pertence a uma geração que, em torno à bandeira da história das mentalidades, tomou distância dos "profetas barbudos" do século 19 para dedicar-se a temas "menores": Darnton estudou a difusão das idéias iluministas na França, da Enciclopédia à literatura ilegal, de Rousseau aos autores de obras libertinas; escreveu sobre mesmerismo e contos folclóricos, pesquisou relatórios de policiais e censores do Antigo Regime para entrar na vida boêmio-literária de então. Atualmente, termina um livro sobre censura e produção literária.
A par de sua produção estritamente historiográfica, Darnton escreve regularmente também sobre temas contemporâneos. Colabora regularmente para o Mais!, onde não se furta a falar de TV, eleições americanas ou modismos intelectuais. Surpreendido pela queda do Muro de Berlim quando passava uma temporada acadêmica naquela cidade, escreveu um "Diário de Berlim, 1989-1990" (editado pela W.W. Norton), em que narra seus encontros e andanças pela antiga Alemanha Ocidental.
No Brasil, já foram publicados vários títulos seus, entre os quais "O Grande Massacre de Gatos" (Graal), "Boêmia Literária e Revolução" (Cia. das Letras) e "O Sorriso de Lamourette" (Paz e Terra). Para a próxima Bienal do Livro, a Cia. das Letras prepara o lançamento de "O Iluminismo Como Negócio". Nesta obra, baseada num exame minucioso dos arquivos da Sociedade Tipográfica de Neuchâtel, Darnton ocupa-se da produção e difusão da "Enciclopédia", ícone maior do Iluminismo, a partir da década de 1770. Aliando amor ao detalhe e desgosto com as generalizações mais usuais sobre o Século das Luzes e das origens intelectuais da Revolução Francesa, o livro oferece um "tour" quase etnográfico pelos meandros da produção e da censura literárias sob Antigo Regime.
Antes de entrar para a carreira universitária, o prof. Darnton trabalhou no "The Washington Post". Hoje leciona no departamento de história da Universidade de Princeton (New Jersey, EUA), de onde concedeu uma longa entrevista telefônica à Folha.
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Folha - O sr. poderia começar por adiantar o tema de suas palestras?
Darnton -Bem, eu darei várias palestras sobre vários temas, de modo que acho melhor tentar resumir em poucas palavras o tema geral das minhas pesquisas em andamento. Há 30 anos venho me interessando pelo modo como as idéias, as visões de mundo, a informação circulam na sociedade, especificamente na sociedade francesa do século 18. Aquele foi um século particularmente interessante, porque pela primeira vez achavam-se reunidas as condições para fazer da palavra impressa um veículo de grande alcance para a comunicação social, algo capaz de chegar ao que os franceses chamam de "grand public". Assim, comecei praticando o que podemos chamar de história do livro, da palavra impressa, mas tenho ampliado essa abordagem rumo ao que gosto de chamar de história da comunicação humana.
Folha - Que consiste em...
Darnton -Trata-se de examinar a interação entre o contexto social e a comunicação humana, impressa ou não. Deixe-me dar um exemplo concreto. Os franceses do século 18 reuniam-se o tempo todo em seus cafés para fofocar: deliciavam-se com toda espécie de detalhes picantes sobre a vida privada deste ou daquele nobre, do rei e da rainha. A coisa não parava aí: essa fofocas corriam de boca e boca até serem redigidas e publicadas em edições mais ou menos ilegais, que preocupavam profundamente a polícia. Por quê? Penso que parte do interesse residia na possibilidade de, por meio da fofoca, trazer para um nível humano comum aqueles grandes personagens que, por estarem situados vários degraus acima na hierarquia do Antigo Regime, pareciam tão distantes da vida dos homens comuns. Há então um nexo entre essa forma específica de comunicação e a vida política de então.
Folha - Algo assim explicaria o sucesso que o romance "Primary Colors" tem tido nos EUA?
Darnton -Exatamente. Claro que a introdução do voto democrático mudou muito o panorama político, mas esse romance parece mostrar que as pessoas comuns continuam a sentir algo daquela necessidade de reduzir os grandes mandachuvas da política a um nível humano mais básico e comum.
Folha - Num ensaio sobre a literatura erótica do século 18, o sr. saiu a campo contra certas historiadoras feministas, ao tentar mostrar quão liberador esse tipo de literatura pode ter sido. O sr. também mostrou que parte desse potencial vinha do contato entre o erotismo e certa gama de idéias filosóficas radicais. O que aconteceu desde então?
Darnton - Espero não chocá-lo, mas nunca li uma obra erótica ou pornográfica posterior ao século 18 (risos). Não sou especialista, mas tenho a impressão de que as duas coisas se separaram bastante; com o fim da censura, inaugurou-se uma tradição de debate público aberto, ao passo que o erotismo passava ou voltava a servir puramente à excitação sexual. Enquanto que, no século 18, sob forte censura, o erotismo fora um grande instrumento para pensar, era "bon à penser". Como no caso da fofoca, o erotismo servia para refletir sobre o que de outro modo seria impensável ou impublicável. Mas de fato não sou especialista; gente como Georges Bataille provavelmente ainda veria significados mais profundos até mesmo no erotismo que circula hoje em dia.
Folha - Esse tipo de literatura dependia também de um contato com a produção mais "elevada", coisa que hoje não parece mais acontecer. Vale então a pena continuar a trabalhar com os conceitos de cultura "alta" e "baixa"?
Darnton -Nunca tive grande fé na utilidade analítica dessas noções, mesmo em se tratando de estudar sociedades mais antigas. Mas, seja como for, acho que o aparecimento dos "mass media" alterou definitivamente a situação: o que acontece hoje é que quase todos somos atingidos por uma mesma cultura de massa, pouco importando a que estrato social pertencemos. Ao lado disso, multiplicam-se as culturas de especialistas, que não têm necessariamente muito a ver com "alto" ou "baixo". O problema é que boa parte da produção dos "mass media" é de péssimo nível. Não sei como é a TV brasileira, mas a nossa é péssima. Tenho três filhos e prefiro que eles não percam seu tempo com isso. Não tenho nenhum aparelho de TV em casa. Isso causa alguns problemas com os colegas de escola, mas prefiro que seja assim. A TV tem empobrecido enormemente a imaginação das pessoas.
Folha - O sr. estudou o conto folclórico francês e a mentalidade camponesa embutida nele. Agora que o conto tradicional, as mitologias sagradas e outras de imaginação narrativa abandonaram o lugar central que já ocuparam, que forma ocupa ou ocupará esse vácuo?
Darnton - É uma pergunta difícil. Não vejo nenhuma outra forma narrativa com lugar de destaque no mundo ocidental, e não sou especialista para falar de outros países. Mas, recentemente, estive pesquisando nos arquivos britânicos sobre a Índia, venho acompanhado um pouco a política daquele país. E, como você deve saber, o fato mais importante nestes últimos anos foi o renascimento do partido fundamentalista hindu, às expensas do tradicional Partido do Congresso. Ora, isso provocou, entre outras coisas, um renascimento de mitos e histórias sagradas, remodelados com vistas a refletir sobre situações e problemas atuais. Então, aí estão narrativas tradicionais em plena atividade. Mas eu não ousaria extrapolar isso para qualquer país do mundo ocidental desenvolvido.
Folha - O sr. escreveu recentemente sobre a candidatura de Colin Powell e o mito político do "homem comum". Há quaisquer outros mitos por trás das candidaturas de Clinton e Dole?
Darnton -Não vejo nada dessa espécie. O que há, sim, é o surgimento de um contra-mito, o do político não-profissional que chega à Casa Branca e faz o que os outros não sabem ou não querem fazer. E tanto Clinton quanto Dole são a imagem encarnada do político profissional. Daí a popularidade de iniciativas como a de Ross Perrot e sua idéia de fundar um terceiro partido -coisa que não creio que venha a acontecer. O nível desta campanha é tão baixo que não teremos nada de comparável à ebulição das campanhas de Woodrow Wilson ou Roosevelt.
Folha - E quanto ao neofundamentalismo protestante nos EUA -não será essa uma mitologia nacional emergente? Até há pouco o fundamentalismo parecia ser coisa do Terceiro Mundo, mas agora o fenômeno se repete no que era apresentado como o coração da democracia liberal ocidental.
Darnton - A religião nunca esteve ausente da política americana. Com a curiosa exceção do século 18, quando uma elite esclarecida e secularista redigiu a Constituição e construiu o esqueleto da democracia americana, as várias denominações e seitas religiosas sempre tiveram muita força política. Não fosse por esse breve período secularista, estaríamos numa fria. O culto norte-americano à Constituição e aos Pais Fundadores -Jefferson, Washington, etc- é um núcleo de identidade que, por estranho que possa parecer a quem o observa de fora, é perfeitamente genuíno e tem garantido uma certa estabilidade à tradição de tolerância e liberdade religiosa.
Folha - Passando a temas mais acadêmicos: o seu nome é sempre associado à história das mentalidades. Qual é a situação atual desse ramo historiográfico? O sr. não teme que, uma vez entronizado na academia, o próprio conceito de mentalidade acabe por se tornar tão vago e frouxo quanto o de "Zeitgeist" já foi?
Darnton - Sim, decerto. O problema da história das mentalidades é que jamais houve uma teoria qualquer por detrás do conceito. O próprio termo funcionou, nos anos 60, muito mais como um chamado às armas contra a história intelectual muito árida que se praticava naquela época. O que se fazia antes de todo esse movimento? A história econômica ocupava-se dos pobres, enquanto a história das idéias limitava-se à produção dos filósofos, cientistas e escritores. A intuição fundamental da história das mentalidades era a de estender a história intelectual a todos os homens. Foram escritas muitas monografias descritivas, muitas delas excelentes e inovadoras. Mas não havia nenhuma grande teoria por trás disso.
Acho que foi por isso que fomos nos aproximando mais e mais da antropologia. O que eu faço hoje em dia pode muito bem ser descrito como história antropológica. Até prova em contrário, sociedades antigas devem inevitavelmente nos causar a mesma estranheza provocada pelas culturas que estudam os antropólogos. Daí a aproximação com a antropologia.
Folha - E essa associação persiste ainda hoje?
Darnton -Sim, mas agora há novos problemas. Os antropólogos sempre divergiram muito entre si, o que acho muito saudável, mas a antropologia contemporânea parece duvidar da própria possibilidade de formular grandes teorias à maneira de Evans-Pritchard ou Malinowski. Acho que se encerrou a era dos grandes profetas barbudos do século 19 -gente como Marx, Weber e Freud. Mas há novos caminhos que, por modestos que pareçam, são promissores para a pesquisa futura. Por um lado, há o desenvolvimento da antropologia simbólica...
Folha - E na história?
Darnton - De imediato, ocorrem-me os nomes de John Pocock e Quentin Skinner, que pesquisam os liames entre os vários níveis e fontes das linguagens da política e as grandes teorias que, para a historiografia anterior, ocupavam um mundo à parte.
Folha - O sr. incluiria aí os trabalhos de Michael Baxandall (autor de "O Olhar Renascente")?
Darnton - Sem dúvida! O que Baxandall faz com a história da arte, ligando a produção das obras-primas aos hábitos visuais, às técnicas de mensuração ou às tradições retóricas de cada período é perfeitamente análogo ao que eu próprio busco fazer.
Folha - E quanto a seu livro-diário sobre a reunificação alemã? O sr. foi a Berlim como convidado de um instituto universitário, mas o livro que o sr. escreveu é uma obra jornalística, não?
Darnton - Acho que é uma boa descrição do tom geral do livro -de fato, não há notas de rodapé, nem discussão de fontes e coisas assim. Fui para a Alemanha em 1989 com a intenção de escrever um novo estudo sobre o século 18, mas não é possível assistir impassível a um acontecimento como a queda do Muro; não resisti à tentação de simplesmente ir à rua, andar à toa, fazer entrevistas como nos meus tempos de jornalista, ou simplesmente conversar com as pessoas que ia encontrando. Mas também tinha a intenção de fazer algo de semelhante ao trabalho de campo dos antropólogos, algo assim como um jornalismo etnográfico -idéia que acho perfeitamente viável. Assim, há capítulos do livro que são comparáveis a monografias etnográficas sobre noções de tempo, espaço, dinheiro etc.
Folha - Nesse mesmo livro, o sr. voltou a um de seus temas favoritos: a memória histórica como fator social determinante. O sr. assinalou o paradoxo de uma nação -a antiga Alemanha Oriental- que, no próprio instante de seu nascimento como nação democrática, começa por redigir não uma declaração de independência, mas uma declaração de culpabilidade frente às vítimas do Holocausto. Aquele foi um ato isolado ou ainda se notam ecos dessa atitude?
Darnton - Não me parece ter sido um ato isolado. Ao contrário dos alemães ocidentais, os orientais não puderam, por 40 anos, enfrentar seu próprio passado. O governo comunista não se sentia em nada responsável pelo acontecido durante a guerra. Daí a declaração de culpa logo na primeira seção do Parlamento eleito livremente. Mas o ajuste de contas com o passado ainda continua. Os alemães orientais ainda têm muitas camadas de culpabilidade a desenterrar, às vezes literalmente, como no caso dos campos de concentração nazistas que os soviéticos continuaram a usar para fins próprios. Foram descobertas valas comuns de alemães, culpados e inocentes, nos mesmos lugares que haviam servido ao extermínio de judeus.
Mas a memória da Segunda Guerra não é um problema apenas para os alemães: pense na recepção hostilíssima que tiveram na França os livros de Robert Paxton (sobre as atividades colaboracionistas de personalidades francesas). Os franceses viviam até agora da imagem de uma resistência heróica e quase unânime ao invasor.
Folha - Olhando em retrospecto, essa experiência de história viva repercutiu no modo como o sr. entende sua disciplina acadêmica?
Darnton - Eu não seria capaz de listar quais mudanças minha estadia em Berlim provocou. Mas há um aspecto do que eu pude observar então, que me marcou profundamente. A profunda e completa ilegitimidade do governo da ex-RDA aos olhos de seus próprios cidadãos despertou minha atenção para o problema da legitimidade, e agora estou ansioso por reexaminar alguns aspectos do século 18 sob este novo ponto de vista.

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