São Paulo, domingo, 11 de agosto de 1996
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A romanesca imposição da heterossexualidade

GORE VIDAL

Quando o Gulag freudiano (teoria de Freud) finalmente implodir como a antiga Iugoslávia, é animador saber que o culto e por natureza irreverente Jonathan Ned Katz haveria de estar presente para enfiar uma estaca de madeira em seu coração agonizante. A heterossexualidade, um conceito fatídico de origem recente, mas de consequências terríveis, é, obviamente, fundamental para as noções muito estranhas da sexualidade humana que Freud e seus discípulos nos impuseram durante um século.
Segundo o profeta, começa-se nascendo -este viria a ser o último fato facilmente compreensível de que ele tratou; então, o bebê sente uma atração erótica pelo genitor do sexo oposto; em seguida, teme o incesto assim que lhe é explicado o que é isso, portanto reprime o melhor que pode um desejo profundo de copular com o pai ou a mãe; mais tarde na vida, devido a essa repressão, o adulto (o bebê que cresceu) passa a ter asma e caspa... até se consultar com um discípulo de Freud, que lhe dirá que, embora tenha reprimido os seus impulsos incestuosos básicos (mas isso de fato ocorreu?), será curado assim que admitir que desejou praticar o ato sexual com a sua velha mãe, como Édipo. Tipicamente, Freud conseguiu confundir até mesmo aquela alusão clássica: Édipo matou o seu pai e teve relações sexuais com a sua mãe sem saber quem eles eram; por isso, talvez apenas na história freudiana, o rei Édipo não sofria do complexo que tem o seu nome.
Freud foi um pretenso novelista romântico da escola de Nietzsche e da escola modernista-simbolista (sua visão de Leonardo da Vinci é uma ficção histórica digna de Rafael Sabatini) que criou uma estranha doutrina à qual ninguém jamais prestaria atenção se não fosse por seu brilho pessoal e sua megalomania imperturbável. Com o correr do tempo, Freud criou uma teoria sobre o desenvolvimento sexual humano que se baseia, como é comum com ele, em uma série de hipóteses falsas.
O bebê passa, se tiver sorte, de desejos incestuosos para um desejo por si próprio (masturbação) e depois por outros iguais a ele -a coisa abominável que a Comissão Levítica denunciou na Babilônia- e então, com sorte, e talvez com a intervenção de um admirável judeu habitante da antiga Viena, ele, como adulto, ascenderá ao platô feliz da heterossexualidade em que mamãe e papai fazem o que convém na alegre certeza de que estão seguindo, se não o roteiro de Deus, o mais importante de Freud, inventor da psicanálise (sensatamente ele costumava dormir enquanto os seus pacientes tagarelavam no divã a seu lado).
Não importa o que estava atormentando uma jovem, ele sempre estava lá para lhe dizer que aquilo era apenas histeria e tocar em seu clitóris era muito desaconselhável, já que maturidade significava orgasmo vaginal, algo que não existe, mas que ele acreditava que existia, e por isso conseguia até mesmo entender mal a própria anatomia que tão firmemente declarara ser destino. Freud certamente nunca viu coisa alguma na natureza humana que ele próprio, como um deus desatento, não colocara lá.
Há alguns anos, muito antes da doutrina freudiana começar a desmoronar, Katz questiona sua base essencial: a heterossexualidade, como o graal, o máximo em maturidade humana e felicidade. Enquanto eu escrevo essa última palavra, penso nos lapsos ou equívocos freudianos. O primeiro-ministro e a sra. Harold Macmillan estavam almoçando com o general e a senhora De Gaulle em Paris. Macmillan e de Gaulle falavam sobre o que fariam quando ele não mais governasse o seu país. Ambos disseram que escreveriam um livro. Polidamente, Macmillan perguntou à sra. De Gaulle o que ela queria depois que as luzes se apagassem e as trombetas silenciassem. O inglês da sra. De Gaulle não era bom.
"Eu gostaria", disse solenemente, "de um pênis."
O inabalável Macmillan assegurou-lhe que aquilo era algo muito sensato a desejar. Contudo o general, percebendo a gafe de sua esposa, disse, em seu inglês um pouco melhor:
"Madame quer dizer app-penis" (1).
Os freudianos nunca conseguiram propor uma palavra adequada (em vez de uma híbrida greco-latina) para a heterossexualidade, porque os gregos não sabiam o que era isso. Sabiam sobre a reprodução, a luxúria e o amor. Sabiam sobre a intensidade do desejo sexual entre homens e homens, mulheres e mulheres, mas para eles, Lesbos era apenas uma ilha distante, próxima à costa da Ásia, Menor, enquanto Safo era a sua poetisa digna do prêmio Pulitzer. Infelizmente, como um burguês vienense do final do século 19, Freud tinha idéias convincentes saídas do Antigo Testamento sobre o que era comportamento bom e inadequado.
Também não era tolo (embora sob muitos aspectos fosse um homem perverso) e por isso aceitou a bissexualidade do comportamento humano. Como um apreciador do clássico, conhecia a história e a cultura gregas. Não lhe passara despercebida a fúria de Aquiles despertada pela morte de seu amante. Mas, finalmente, o advogado natural do Antigo Testamento que existia nele venceu. Pênis mais vagina é igual a bebê e ponto final. Ele considerou aquilo o fato básico, embora fizesse sexo com a sua cunhada, e nenhum dos adúlteros desejasse gerar um bebê. A invenção da palavra heterossexualidade ocorreu nessa época (deixo a cargo de Katz a data exata).
No início, heterossexualidade significava um interesse inconveniente pelo sexo oposto -em outras palavras, o bebê geralmente era expulso por meio do uso de duchas. Na virada do século, a classe média em ascensão praticava o sexo não-seguro e, na ausência de um conceito grego, propôs um neologismo para descrever algo que todas as outras culturas descreviam simplesmente como sexo. Nesse meio tempo, como o cérebro é binário (fonte de nosso um/outro modo de pensar), tinha de haver outra palavra para indicar o oposto, e por isso homossexualidade foi inventada, e Katz agora mostra como as palavras se tornaram rígidas em seu uso atual.
Grupo bom: hetero. Grupo ruim: homo. Homo versus gay. Um ou outro; nenhum Sr. Intermediário. Essa divisão tem criado dificuldades constantes para muitos homens e muitas mulheres, ao mesmo tempo que dá muita alegria para os governantes dos reinos que aceitam essas categorias antinaturais -porque eles podem então banir o grupo ruim, mantendo dessa forma o controle sobre grande parte da população, o objetivo de todo governo em todos os lugares e em todas as histórias que conhecemos.
Analisando os estágios pelos quais essas palavras confusas se tornaram conceitos, que depois se tornaram fatos, Katz acaba rigorosamente com toda a falsa divisão. Eu tenho, com frequência -talvez até sucessiva-, insistido em que não existem pessoas homossexuais e heterossexuais, apenas atos hetero ou homo, e em que a maioria das pessoas, em um momento ou outro, apesar dos horríveis tabus, faz das suas por aí, como costumávamos dizer quando eu era criança, em Washington, DC.
Katz repete o meu refrão monótono, observando que essa também era a opinião geral do dr. Kinsey, cujo relatório sobre o comportamento sexual do homem foi publicado um mês ou dois depois do meu romance, "The City and the Pillar", no qual dois rapazes hetero têm um caso amoroso com consequências terríveis, graças ao tempo e lugar em que estavam vivendo: os Estados Unidos, que um dia Spiro Agnew chamou de a mais importante nação do mundo.
Faço uma certa objeção à reverência com que Katz lida com os pensamentos desse eminente orador e amigo meu, James Baldwin. Em 1949, Baldwin realmente teve algumas coisas sensatas a dizer sobre o absurdo de se ver em uma única dimensão a personalidade humana: é absolutamente impossível escrever um bom romance sobre um judeu, um cristão ou um homossexual, porque infelizmente as pessoas se recusam a agir de um modo tão regular e unidimensional. Como dizem os franceses, isso subentende-se. Mas então ele critica a minha novela do ano anterior em que o homossexual assumido... mata o seu primeiro, único e perfeito amor quando finalmente eles se encontram de novo, porque não suporta em vez disso matar aquele sonho de amor devastador e impossível.
Isso deixa de lado o ponto principal. "The City and the Pillar". Título bíblico. Que cidade? Sodoma. Vida homossexual. Pilar? A esposa de Lote poderia ter sido salva da destruição de Sodoma se não tivesse se virado para olhar pela última vez para o esplendor da velha cidade. Ela dá uma espiada. É transformada em um pilar de sal. Meu protagonista, Jim Willard, não é um homossexual assumido -Baldwin não foi o crítico mais atento do nosso tempo-, Willard odiava os efeminados e só tentou ficar vivo até voltar a unir-se ao seu primeiro, único e perfeito amor.
Eu concordo com Baldwin que isso provavelmente era impossível, mas dificilmente devastador. Era muito romantismo levado a um grande extremo. Em vez de seguir em frente (não para o misterioso lugar bom e elevado de Freud, a heterossexualidade, em que o ar é rarefeito demais para que muitos respirem), ele passa a vida olhando para trás, para uma união perfeita com outro rapaz e, quando o reencontra, acha que o outro agora vive onde o ar é rarefeito.
Por isso rejeita-o e, na melhor tradição romântica obsessiva, mata-o. Até mesmo o título do livro é uma advertência sobre o temperamento romântico. Mas Baldwin acha que essa resolução violenta é induzida por um pânico que se aproxima da loucura. Essas novelas (está incluída "The Fall of Valor", de Charles Jackson) não dizem respeito à homossexualidade, mas ao perigo sempre presente da atividade sexual entre os homens.
Isso poderia ser verdadeiro em relação a Jackson, mas não a mim. Eu afirmo em todo o livro que os atos homossexuais são de fato uma coisa ótima e, para alguns homens e algumas mulheres, sempre preferíveis aos atos heterossexuais. Esse era um conceito novo em 1948. Mas os heróis românticos geralmente têm finais trágicos, como demonstra Shakespeare com os seus dois adolescentes rebeldes de Verona. Em todo o caso, alguns anos depois de criticar-me pelo pânico, exatamente a palavra errada, Baldwin escreveu "Giovanni's Room", um livro aterrorizante, que termina com a cabeça do grande amor decapitada em Paris.
Katz não só se diverte com tudo isso, como consegue lançar por terra duas palavras cuja invenção criou categorias falsas, tornando assim possível controlar totalmente as pessoas por meio de tabus legais que agora devem ser abolidos, como concluirá qualquer leitor seu não-supersticioso.
NOTA DA TRADUÇÃO
1. De Gaulle pronunciou mal a palavra "happiness", que em inglês significa felicidade.

Tradução de Clara Fernandes.

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