São Paulo, sábado, 17 de agosto de 1996
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Procura-se um autor para "Santa Jacqueline"

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

"Santa Evita", de Tomás Eloy Martínez, é um livro muito desarrumado. O autor o chamou de romance porque assim o leitor não pode se queixar de uma falta de ordem que não deveria ter o livro, caso se apresentasse como o que realmente deveria ser -uma biografia de Eva Perón.
Para garantir sua decisão de promover o livro a romance, o autor conseguiu umas linhas sobre sua obra de ninguém menos que Gabriel García Márquez.
Gabo escreveu essas poucas linhas sobre a verdadeira aventura que foi a vida de Evita depois da morte. E encerrou-as com as palavras: "Enfim, o romance que eu sempre quis ler".
Pronto. Gabo falou, está falado. "Santa Evita" (Companhia das Letras) passou a ser romance. Aliás, Tomás Eloy tem idéias radicais a propósito: "Todo relato é, por definição, infiel. A realidade (...) não pode ser contada nem repetida. A única coisa que se pode fazer com a realidade é inventá-la de novo".
A impaciência que pode sentir um autor diante da tarefa de biografar Evita é que, por incrível que pareça, há pouco a dizer.
Eva Duarte teve infância miserável, um físico banal de "cabecita negra" fadada a se oxigenar, sórdido início de vida amorosa, durante algum tempo ao lado de um certo cantor chamado Agustín Magaldi, e -isto sim é positivo- uma fome de poder insaciável.
Quando descobriu Perón, Evita sentiu que, com aquela alavanca, moveria o mundo.
"Santa Evita" é um livro que diz -e nos convence do que diz- que o sexo representa pouco nessa história.
"Obrigado por existir", teria dito Evita a Perón ao conhecê-lo pessoalmente em 1944, dois anos antes de Perón ser presidente, mas quando já se imaginava que seria.
Daí em diante Evita foi assumindo o papel de cabeça do casal e mãe dos milhões de descamisados. Surgia a deusa do povão argentino.
Depois de morta em 1952, embalsamada, santificada, ela, que os argentinos sofisticados jamais haviam tolerado, se tornou o pesadelo nacional por excelência.
Na fina revista "Sur", a poetisa Silvina Ocampo saudou assim o diagnóstico do câncer que acabou por destruir Evita: "É tempo já que morra/essa raça maldita, essa fétida borra".
Não longe da residência presidencial onde Evita agonizava, apareceu uma pichação de parede: "Viva o câncer".
Mesmo no Uruguai vizinho, um escritor de categoria como Onetti aderia ao asco argentino, escrevendo um conto em que o cadáver de Evita ia ficando verde, cada vez mais verde.
Em "O Simulacro", Borges pintou Evita como "uma boneca morta em uma caixa de papelão, venerada em todos os subúrbios".
Tudo levado em consideração, o clássico sobre Eva Perón e suas aventuras post-mortem será sempre o livro do médico e embalsamador Pedro Ara, "El Caso Eva Perón".
Ara (1891-1973) foi contratado por Perón para embalsamar Evita logo que a morte dela foi considerada fatal e próxima, em 1952.
O médico passou a acompanhar a futura morta, discreto e sinistro. Seu trabalho, ao que se diz, foi de fato uma obra-prima de embalsamamento. E de resistência.
A múmia de Evita, segundo Eloy Martínez, está hoje no fundo de uma cripta no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, debaixo de três chapas de aço, portas blindadas, leões de mármore.
Mas antes disso sofreu nada menos que 12 transferências, algumas tragicômicas, sendo que duas para o exterior. A múmia esteve, respectivamente, na Itália e na Espanha.
Os militares, que haviam finalmente derrubado Perón depois do seu segundo período (1973-74), queriam que o povo esquecesse a embalsamada. Mas nunca chegaram a destruí-la.
Ara viu sua múmia pela última vez em Madri, quando ela voltara às mãos de Perón, então casado com Isabelita e acolitado por López Rega, o bruxo e umbandista que foi uma espécie de Rasputin da última fase Perón.
Segundo Eloy Martínez, López Rega tentava transferir a alma de Evita embalsamada para Isabelita viva.
Diga-se de passagem que os argentinos criavam então uma certa confusão entre vivos e mortos. Em 1987 alguém roubou, do cemitério de La Chacarita, as duas mãos de Perón, que morreu em 1974.
Mas fiquemos, em termos de mortos, com Evita, que até certo ponto conquistou os próprios Estados Unidos.
Cito de novo Eloy Martínez: "A ópera, o musical (...) de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber simplificou e resumiu o mito (...) Às vezes, para me desanuviar do computador, saio dirigindo sem rumo certo pelas estradas desertas de Nova Jersey. (...) De uma hora para outra canta Evita. Eu a ouço sair da garganta rascante da rapada Sinnead O'Connor".
Evita se tornou, nos EUA, "uma figura familiar, mas a história que dela se conhece é a da ópera de Tim Rice. Talvez ninguém saiba quem ela foi na realidade; a maioria imagina que a Argentina é um subúrbio de Guatemala City".
Mesmo assim, mesmo que os americanos nada saibam sobre quem de fato foi Evita, ela, segundo o autor de "Santa Evita", teria "ficado lisonjeada, sim, de ver seu nome escrito com lantejoulas na fachada de um teatro de New Brunswick".
Dificilmente os americanos se interessarão pela história real de Evita. Não me parece que o culto dos mortos tenha muito a ver com os vivíssimos americanos, a menos que se trate de algum herói militar.
Mas mulheres? Apesar da luta das feministas, nunca se esculpiu uma cabeça de mulher entre os patriarcas do Monte Rushmore.
Ou será que não é bem assim? Eu me lembrei, de repente, de Jacqueline Kennedy Onassis e do inacreditável leilão que fizeram em abril passado de suas jóias e quinquilharias.
O leiloeiro Sotheby levou ao martelo 5.914 objetos pessoais de Jackie, esperando vender tudo por cerca de US$ 4 milhões, mas chegou, afinal, ao total extraordinário de US$ 35 milhões.
Colares que valiam US$ 500 foram vendidos por US$ 200 mil. Uns velhos tacos de golfe que os leiloeiros calcularam valer entre US$ 700 e US$ 900 foram arrematados por US$ 772.500.
Por outras palavras, não houve um leilão e sim uma pia venda de relíquias.
O caso é curioso e mereceria talvez um estudo comparativo da vida dessas duas mulheres tão diferentes e que fascinaram países tão diferentes.
Jacqueline Lee Bouvier Kennedy Onassis foi do colégio Vassar, da Sorbonne, da Universidade George Washington.
Evita, filha ilegítima de Juana Ibargurén, nasceu nos cafundós de Los Toldos, não teve praticamente instrução nenhuma e mal conseguiu ser atriz, tão mal falava a própria língua. Mas duvido que, caso tivesse ficado viúva de Perón, Evita aceitasse se casar com Onassis.
Quem se abalançará a escrever, com mais arrumação, mas igual emoção, o livro que falta, "Santa Jacqueline"?

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