São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cosette Alves diz por que vendeu o Mappin

MATINAS SUZUKI JR.
EDITOR-EXECUTIVO

A empresária afirma que cumpriu o seu ciclo na loja de departamentos e planeja construir uma fundação

A Mappin Stores, fundada em 1913 pelos britânicos John Mappin e John Kitching, não foi somente a primeira loja de departamentos de São Paulo.
Foi também, durante décadas, o lugar mais elegante do centro da cidade -ponto obrigatório para quem queria ver e ser visto.
Conta-se, por exemplo, que o banqueiro Numa de Oliveira, presidente do Banco Commércio e Indústria de São Paulo, andava, como alguns de seus colegas de hoje, com a corda no pescoço.
Numa detestava aparecer. Dizia-se que ele era famoso por correr com a bengala em riste, sempre que ouvia o espocar de um flash, atrás do fotógrafo louco para dar o furo de imagem para o jornal.
Com os rumores sobre a bancarrota do Commércio e Indústria, prosperaram os boatos dizendo que Numa teria se suicidado.
Os amigos do banqueiro não tiveram dúvidas: aconselharam Numa de Oliveira, contra o seu hábito, a tomar um chá das cinco no Mappin da praça Patriarca, onde a loja residiu até 1939.
Seria a declaração em carne e osso à praça de que ele estava vivo.
A cidade de São Paulo mudou. O Mappin também mudou. Mudou de endereço, foi para a frente do Teatro Municipal, e mudou o perfil da sua clientela.
A um interlocutor importante, o advogado Alberto Alves Filho, que passou a ser o principal acionista do Mappin em 1950, confessou que o seu projeto era o de substituir as vendas à vista, maior fatia das transações do magazine, pelas vendas a prazo.
O último sopro que restava daquela elegância do Mappin despediu-se dele, na tarde da última quinta-feira, vestindo um Chanel branco e uma gargantilha de pérolas de cinco voltas.
A empresária Sônia Cosette Dormit Alves vendeu o controle acionário da Casa Anglo Brasileira, holding dos magazines Mappin, para o empresário Ricardo Mansur, um "outsider" no ramo do grande varejo, do grupo United Indústria e Comércio, pelo valor estimado no mercado entre US$ 20 e US$ 25 milhões.
À parte a importância do negócio para a praça, ele despertou um interesse maior, seja pelo valor simbólico que o Mappin tem para a cidade de São Paulo, seja, em medida menor, porque recentemente a loja contratou o polêmico executivo Pacifico Paoli, saído de uma gestão de êxito barulhento na Fiat, para empreender uma dolorosa reestruturação nas suas entranhas.
Foi justamente a reestruturação da empresa a principal razão da venda do Mappin. Homens, quando falam de reestruturação, parecem estar regurgitando balanços. Não deve haver dor nos números.
Por ser mulher e por ser corajosa, a empresária Cosette Alves mostra nesta entrevista exclusiva à Folha que, se o constrangimento com a lógica contemporânea do enxugamento de empresas nem sempre triunfa, ele, pelo menos existe, e deve ser nomeado.
Cosette, que recebeu as ações do Mappin como herança de Alberto Alves Filho, conta também como uma conversa telefônica com o escritor e colunista da Folha Carlos Heitor Cony foi decisiva para a sua resolução de vender o Mappin.
Coincidentemente, sem saber de nada, naquela mesma tarde da transferência do controle do Mappin, Cony, na Bienal do Livro, estava recebendo a notícia de que o prêmio Jabuti de melhor livro de ficção do ano era dele, pelo quase romance "Quase Memória".
*
Folha - Por que você vendeu o controle do Mappin?
Cosette Alves - Eu cumpri o meu papel no Mappin. Nós empresários somos instrumentos de um ciclo dentro das empresas.
Eu herdei o controle acionário em 1982, em um período bastante difícil da economia brasileira, caracterizado pela estagnação, pela inflação e pelas altas taxas de juros.
Nesse período, o Mappin aumentou de 23 mil para 95 mil m2 de área de venda. O Mappin triplicou as suas vendas de 82 para cá e passou, em 95, de US$ 1 bilhão de faturamento.
Agora, nós iniciamos um processo de reestruturação que é necessário. A reestruturação do Mappin foi planejada para ser acompanhada de um processo de expansão muito forte e muito intenso.
Sem a expansão, a reestruturação seria muito desumana. Eu já cumpri o meu papel. Eu acho que o comprador tem mais condições de tocar a expansão e fazer com que o Mappin atinja um outro nível de desenvolvimento.
Folha - Qual era a sua participação no Mappin?
Cosette - Eu tinha 53% da holding, que significavam 50,4% do Mappin.
Folha - Havia rumores no mercado dizendo que você tinha várias ofertas na mesa.
Cosette - Eu não coloquei o Mappin à venda, foram os interessados que me procuraram.
O Ricardo Mansur procurou-me pela primeira em vez em 94. Naquela época, eu não estava pronta internamente para vender o Mappin, apesar das dificuldades pelas quais nós estávamos passando.
Nessa época, o Ricardo Mansur voltou a apresentar propostas, desta vez trazidas pelo Bradesco.
Eu comecei recusando, porque estava interessada na reestruturação, mas as propostas foram ficando cada vez mais intensas.
Com a estabilização, o olhar do investidor ficou focado na área de varejo e de crédito ao consumidor.
Folha - Por que você se decidiu pelo Ricardo Mansur?
Cosette - Eu fui amadurecendo o processo. Conversei mais com o Ricardo, para saber quais eram os planos dele.
Eu senti que ele tinha um projeto de continuar a reestruturação e o projeto de expansão. Aliás, uma expansão muito rápida, incluindo franquias e lojas especializadas.
Ricardo é um empresário bem-sucedido em todos os negócios que entrou. E o Bradesco, que também é acionista do Mappin, estava intermediando as nossas conversações.
Folha - Qual foi a argumentação definitiva para você se decidir pela venda?
Cosette - Na verdade, foi uma razão pessoal. Eu estava conversando ao telefone com o Carlos Heitor Cony, que eu não conheço pessoalmente, sobre o livro dele "Quase Memória".
Ele perguntou quando é que eu iria começar a escrever o meu livro. Eu respondi a ele que não tinha tempo para escrever.
Esta resposta foi muito dura para mim mesma. Eu vi que havia, dentro de mim, alguma coisa para eu fazer para a qual eu não tinha o menor tempo.
Então, eu percebi que o desligamento das minhas atividades no Mappin já era um processo em andamento. E esse fato, curioso, ajudou muito na minha decisão.
Folha - Que análise você faz do setor de varejo hoje?
Cosette - As lojas têm de encontrar um nicho. Elas precisam ter um projeto estratégico, precisam ser focadas.
O varejo é e será muito competitivo. Para quem não estiver muito estruturado, informatizado e com um projeto será muito difícil.
Folha - Apesar do crescimento em área e em faturamento, nos últimos anos em que você foi a principal acionista, o Mappin deu prejuízo. Por quê?
Cosette - Foi um período extremamente difícil da economia brasileira. Tivemos estagnação da economia, inflação, juros altos, passamos por diversos planos de estabilização.
Talvez, também, nós tenhamos retardado um pouco o nosso processo de reestruturação, necessário para que a loja tivesse uma melhoria na parte operacional.
Folha - Para você, pessoalmente, seria muito penoso fazer as demissões e cortes da reestruturação?
Cosette - Falando francamente, seria. O processo foi muito conflitante para mim.
Talvez eu seja uma empresária à antiga, mas acho que a responsabilidade do empresário é não só a de buscar o lucro, mas também a de gerar empregos, de manter o nível de atividade.
A globalização hoje te obriga a tomar essas medidas de cortar custos e ter mais eficiência. Acredito que ninguém está fazendo isto por sadismo.
Mas, para mim, todo esse processo é muito conflitante. Se eu não posso ser uma empresária moderna como se exige hoje, eu prefiro passar a empresa porque, afinal de contas, esse tipo de movimento é necessário.
Folha - No início você enfrentou preconceitos do tipo "o Mappin virou uma empresa da viúva" etc?
Cosette - No início houve uma certa brutalização e um certo preconceito. Diziam que uma mulher não conseguiria tocar a empresa e que eu a venderia em dois meses, ou, então, que eu a destruiria.
Logo que herdei o controle acionário, recebi as primeiras propostas para a venda, mas não aceitei.
Foi um ano que eu passei como o Ulisses: tapei os ouvidos e fiquei amarrada no mastro, para não ouvir as aves agourentas.
Eu adotei uma posição de humildade e alguns homens me ajudaram muito. O meu conselho de administração, por exemplo.
Eu também passei a estudar administração e economia por três horas toda as noites, com o professor João Carlos Hopp, que foi uma pessoa que me encorajou muito.
Folha - Você acha que o fato de você vender a sua participação no Mappin poderá desestimular outras mulheres empresárias?
Cosette - Eu pensei profundamente nisso e acho justamente o contrário. Eu devo servir como um estímulo.
As mulheres que desejam trabalhar podem olhar a minha história e saber que eu trabalhei com muito contentamento, apesar das grandes dificuldades que tive.
Eu estou deixando algo que eu construí, que eu cresci, que eu mantive os empregos, na época mais difícil do Brasil.
As mulheres devem continuar, mas sabendo que nada é eterno e que todo fim é um novo começo.
Folha - O que significa deixar de ser a "Cosette do Mappin"?
Cosette - Foi um trabalho de desassociação, de desintegração. É uma coisa muito desesperadora você perceber que a sua identidade está misturada, que você perdeu a sua identidade.
Eu passei dois, três anos separando essas identidades. Aliás, escrever para a Revista da Folha me ajudou muito. Eu deixei de ser só a "Cosette dona do Mappin" para ser alguém de quem as pessoas comentam as entrevistas, as reportagens, os artigos.
Antes da decisão de vender o Mappin, eu passei por um processo de separação. Foi um processo amedrontador, porque eu estava muito misturada, com a ilusão de que estava protegida.
Mas o principal é ter lucidez para tomar a decisão na hora certa, para ter tempo para uma nova vida.
Folha - Por que você não aceitou o convite para ser ministra do governo Itamar Franco?
Cosette - Eu não aceitei porque não podia. Eu tinha de trabalhar, a empresa estava em um momento complicado.
A tentação era muito grande, mas prevaleceu a razão. Eu abri mão de colaborar com o presidente Itamar Franco, que na minha opinião foi um grande presidente.
Folha - Você acha que as empresas devam ser profissionalizadas?
Cosette - Acho. O mundo dos negócios caminha nessa direção. Mas deve haver um acionista majoritário para tomar as decisões.
Empresas nas quais decisões não são tomadas por conta da não-existência da última palavra são empresas realmente complicadas.
Folha - Você teria sucessor no controle acionário do Mappin. Ele apoiou a venda?
Cosette - Meu filho foi ótimo. Eu e ele sempre tivemos uma vida muito independente. Ele me disse: olha mamãe, o que você decidir está decidido. Ele é advogado e eu sinto que ele tem outra vocação.
Folha - Você já era rica e calcula-se que vai receber mais uma boa bolada pelo Mappin. Como você vai administrar o seu dinheiro, daqui para a frente?
Cosette - Eu não colocaria as coisas em termos de um montão de dinheiro. Digamos que eu terei bens para tomar conta que antes estavam na empresa, e que hoje eu terei de administrar.
Com a experiência que eu colhi nesses anos todos, eu penso que eu tenho como administrá-los bem.
Além disso, hoje existem pessoas muito competentes, muito especializadas e muito sérias no Brasil que poderão me ajudar.
Mas eu me sinto plenamente capaz de tomar conta dos meus bens. Eu decididamente não sou uma pessoa gananciosa. Tem aí um limite muito claro na minha cabeça: até que ponto é muito importante você ter uma boa disponibilidade financeira e até que ponto o resto não é pura ilusão.
Folha - Os bancos de investimento já estão batendo à sua porta?
Cosette - Ainda não.
Folha - Quais são os seus planos empresariais, daqui para a frente?
Cosette - No momento eu vou ficar de quarentena. Eu quero continuar escrevendo, tentar fazer um livro. E tenho um projeto, não é apenas um plano, de fazer uma fundação.
- Você, há pouco tempo, ajudou a patrocinar uma peça de teatro. Vai continuar investindo no setor?
Cosette - Foi uma experiência muito rica e eu gostaria de continuá-la. É uma coisa que eu vou olhar com muito carinho.
Folha - Como você avalia o governo FHC?
Cosette - O Brasil é um país de imenso potencial. Há um mal-entendido quando as pessoas confundem o Brasil com a Argentina, o México, a Venezuela, com esse reflexo do que acontece lá fora e bate tão forte por aqui.
Veja essa crise recente da Argentina. Não houve nenhum movimento no peso e no câmbio e aqui teve este bafafá danado.
Para mim, como empresária ou como ex-empresária brasileira, o presidente Fernando Henrique devolveu algo essencial: a gente poder trabalhar sem sustos.
Eu conheço menos o Fernando Henrique do que o presidente Itamar. Os dois nos colocaram no princípio da estabilização, mas ela não se faz sem custos.
O Fernando Henrique deve estar preocupado agora com a segunda etapa. O Brasil é um país muito pobre, que vem de um processo recessivo muito grande.
Por um lado, os empresários, a classe média e até as classes menos privilegiadas estão contentes com o desaparecimento dessa inflação maldita que nos perseguiu durante tantos anos.
Folha - Que ponto precisaria ser resolvido imediatamente?
Cosette - O desemprego. É uma situação absolutamente desesperadora ver as pessoas querendo trabalhar e não tendo emprego. Como resolver? Não sei.
Eu recebia um monte de currículos de pessoas me pedindo para trabalhar, e o Mappin passando pela reestruturação. Era tudo muito triste.

Texto Anterior: A qualidade total na saúde
Próximo Texto: Se o presidente Fernando Henrique quiser...
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.