São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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A expansão literária de Portugal

BERNARDO AJZENBERG
ENVIADO ESPECIAL A LISBOA

Por razões de mercado os brasileiros hoje quase só conhecem José Saramago. Mas no seu "primeiro time" de ficcionistas a literatura portuguesa contemporânea tem vários outros nomes. Licenciado em ciências histórico-filosóficas em Lisboa, romancista, cronista, jornalista, Augusto Abelaira, 70, é um deles, no topo da lista.
Sua obra inclui 12 romances e três peças de teatro, além de centenas de crônicas publicadas em jornais. Tem merecido teses em universidades, inclusive no Brasil.
Integrante do grupo de autores que vieram à Bienal, Abelaira deu entrevista à Folha ainda antes da viagem, em seu apartamento no terceiro andar de um prédio do século 17, na região velha de Lisboa.
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Folha - Em "Outrora Agora", seu último romance, de 96, diz-se que todas as histórias já foram contadas. Então, para que escrever?
Augusto Abelaira - Escrevo porque me dá prazer. Além disso, procuro descobrir algo importante na interpretação da realidade, captar um pedacinho dela.
Folha - Como começou?
Abelaira - Comecei a escrever ainda garoto, por imitação. Lia livros do meu pai e queria imitá-los. Depois queria competir com os autores. Não fosse a biblioteca de meu pai, nunca teria escrito.
Folha - Quando sentiu que já não estava só imitando?
Abelaira - Comecei escrevendo teatro, sob influência de Marcelino Mesquita, um escritor menor. Fazia versos também. Um dia meu pai me leu um poema do Fernando Pessoa com os versos que pus como epígrafe do "Outrora Agora": "Com que ânsia tão raiva/ Quero aquele outrora!/ E eu era feliz? Não sei:/ Fui-o outrora agora". Esse verso, que não compreendi no princípio, me revelou uma outra literatura. Dia 1º de setembro de 39, início da Segunda Guerra, comprei um livro de Katherine Mansfield e um do Tchekov, e completou-se a revolução. Mais adiante passei a ler a revista "Presença", que introduziu em Portugal Joyce, Proust, Gide.
Folha - Só publicou já com mais de 30 anos de idade.
Abelaira - Tinha tentado antes, mas o editor recusou. Desisti de escrever, sob o argumento valioso e parvo de que se Dostoiévski e outros já haviam escrito, para que eu iria escrever? Entrei em desespero, até que um dia descobri que nada no mundo me obrigava a escrever como ele, além de que nem só os Dostoiévskis escreveram!
Folha - A crítica brasileira Nelly Novaes Coelho publicou em 73 minucioso estudo sobre seu método de criação. Qual é o seu grau de controle sobre os rumos da obra?
Abelaira - Os ensaístas podem ter razão, mas na maior parte dos casos não tive consciência dos processos que apontam. Mas o papel deles é esse mesmo: enriquecer as obras. Hamlet não era, para Shakespeare, tudo aquilo em que se transformou pela mão dos estudiosos. Há dias recebi uma tese da USP sobre meu livro "O Bosque Harmonioso", segundo a qual os nomes das personagens têm todos eles um significado. Ora, escolhi os nomes ao acaso. Em última análise, o livro é mesmo dos leitores.
Folha - Nelly diz que o nome Humberto, em "Bolor", foi escolhido para lembrar Umberto Eco.
Abelaira - Nem me lembro.
Folha - O sr. acompanha a literatura brasileira? Há em seus livros citações de Drummond, Bandeira.
Abelaira - Hoje tenho pouca paciência para ler romances. Mas na juventude li muitos. O neo-realismo português foi muito influenciado por Jorge Amado, Graciliano Ramos, Lins do Rêgo e Erico Verissimo. Depois veio Guimarães Rosa. Para mim os maiores poetas em língua portuguesa dos últimos 80 anos são Pessoa e Bandeira.
Folha - Seus livros fundem esteticismo e o lado social.
Abelaira - Venho de uma escola esteticista, na qual se enxertaram preocupações sociais. O neo-realismo se opôs a "Presença", e eu fui apanhado nesse choque. Mas, se bem observadas, as obras de esteticistas são também sociais. No fundo o combate entre arte pela arte e arte social é fictício.
Folha - O sr. afirma na reedição de "As Boas Intenções", em 78, que depois de 25 de abril de 74 ninguém mais se interessava pela literatura. O que houve?
Abelaira - Surgiam livros políticos antes proibidos. Os próprios escritores se preocuparam mais com outras coisas, vivia-se o momento muito intensamente.
Folha - Quanto mais se vive, nesse sentido, menos necessidade se sente de escrever, é isso?
Abelaira - Sim, pois escrever é uma forma de viver, e quando a vida real, na rua, chama, sobretudo em grandes momentos, o indivíduo se esgota aí.
Folha - Faz falta o diálogo com outros escritores?
Abelaira - Antes havia cafés, tertúlias. Isso acabou. Provavelmente nossa época já não peça movimentos literários.
Folha - Mas há muita produção.
Abelaira - E de boa qualidade. Mas a literatura hoje não é tão essencial. A necessidade de ficção, que há em todo mundo, é canalizada para o cinema.
Folha - O que acha da frase de Valéry: "Prefiro ter um leitor que me leia muitas vezes a ter muitos que me leiam uma vez só"?
Abelaira - Escrever é um prazer autônomo. Escrevo para um leitor que invento. Não me preocupa o número de leitores.
Folha - Escreve todos os dias?
Abelaira - Não sou do tipo que acorda às 4h da manhã e escreve todo dia. Escrevo quando me apetece, e sempre nos cafés. Preciso de gente em volta, como um público fictício. Quando não tiver mais nada a dizer, ou quando trocarem de vez todos os cafés por agências bancárias, eu paro. Escrevo na verdade sempre um mesmo livro, ou, se quiser, dois. Um com intelectuais e outro que está em três livros satíricos. Quando concluo que fracassei e não consegui dizer o que queria, encerro um livro e tento dizê-lo em outro.
Folha - Mas o sr. tem clareza sobre o que quer dizer?
Abelaira - Se tivesse, já teria dito num livro só.
Folha - Alguns autores têm fortes preocupações estéticas...
Abelaira - Isso é o que distingue a literatura. Aceito que haja literatura e não-literatura, mas não aceito dizer-se que um livro policial não possa ser literatura. André Gide dizia que Dashiel Hammet era o melhor escritor americano. Agora, o que não é literatura são obras de pura distração, que aliás não são desprezíveis, pois quem se preocupa com Tolstói quer de vez em quando se distrair e não vai ao cinema só para ver Antonioni.
Folha - O que acha da unificação ortográfica?
Abelaira - O problema não está na ortografia. Se a literatura portuguesa não tem a expansão que gostaria, é culpa dos portugueses, idem com os brasileiros. Por outro lado, a única possibilidade de a cultura portuguesa se expandir seria via o Brasil. A literatura americana, por exemplo, se expande por ter por trás uma potência econômica. O Brasil acabará por se tornar potência. Se Portugal colocar sua cultura aí, ela poderá se expandir. O Brasil não precisa de Portugal, mas nós precisamos do Brasil.

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