São Paulo, quarta-feira, 21 de agosto de 1996
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Regina Silveira busca a distorção libertadora

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Pense num objeto banal -uma cadeira de escritório, daquelas com rodinhas, por exemplo. E veja o que a artista plástica Regina Silveira é capaz de fazer com isso, na exposição que ela está realizando no Masp, até o próximo domingo.
Regina Silveira não retrata a cadeira giratória. Projeta a sua sombra na parede. Só que a parede não é parede, é uma tapeçaria.
E a sombra não é simples sombra, mas uma sombra vertiginosamente distorcida, como se o espectador fosse, por exemplo, uma formiga no carpete, vendo a sombra da cadeira a partir de um ângulo assustador.
Olhe agora o que Regina Silveira faz de uma planta de decoração. Estão ali o quarto, a sala, a cozinha, o banheiro de um apartamentozinho padrão.
Como nos anúncios imobiliários, ei-los decorados com camas, armários embutidos, fogões. Tudo seria um mero "display" da ocupação desses ambientes, traçado a régua e compasso pelo arquiteto de ambientes.
Só que Regina Silveira pega essa planta de apartamento decorado e a projeta no infinito; é como se víssemos a planta normal por meio de um poço de elevador, por meio de abismos de perspectiva, numa arquitetura marciana.
Graças a um procedimento técnico -as anamorfoses ou distorções da perspectiva-, Regina Silveira obtém resultados expressivos simplesmente assustadores.
O que temos então? Várias coisas. Em primeiro lugar, um resultado expressivo baseado em meios puramente técnicos -o cálculo mirabolante de perspectivas extremas para o desenho.
Em segundo lugar, a crítica do desenho técnico, da industrialização do talento arquitetônico.
Em terceiro lugar, a visão humorística, caricatural, do poder tecnocrático.
Em quarto, uma obra de arte que desconforta e inquieta o espectador. Pois o espectador, o sujeito que visita inocentemente a exposição, depara-se com plantas de cozinha e com móveis de sala de jantar que são totalmente inabordáveis.
É forçado a circular em torno dessas plantas malucas, como se procurasse o melhor ângulo para compreendê-las.
Isso não acontece. O desenho em duas dimensões, como observa bem a crítica de arte Angélica de Moraes, exige do visitante que ele circule em torno, como se se tratasse de uma escultura.
Tudo muda conforme o ângulo em que o espectador se situar. Mas o mais interessante, nessas obras de Regina Silveira, é que a rigor não há ângulo possível para que se veja o que está acontecendo.
Você vai para um lado, encontra o ponto de vista certo para o banheiro do apartamento, mas com isso a cozinha perde qualquer realidade, transforma-se num jogo de linhas endoidecidas.
O que se obtém com isso é uma aventura visual deslumbrante, e ao mesmo tempo uma crítica sutilíssima ao mundo tecnocrático.
O banal se revela distorcido, no virtuosismo técnico do desenho. Mas é o próprio virtuosismo técnico que realça, a uma altura inabitável, a desumanidade da técnica, a frieza dos escritórios, dos apartamentozinhos sufocantes.
Temos aqui uma síntese brilhante de três correntes da arte moderna: o construtivismo técnico e frio, o expressionismo desesperado em suas deformações visuais, a metalinguagem irônica dos surrealistas e dadaístas.
O construtivo e o otimista se deformam nos jogos de perspectiva, ou seja, o design moderno recebe sua autocrítica na exasperação do ponto de vista.
Ao mesmo tempo, o expressionismo se depura de tudo o que tinha de infantilidades gestuais, de atuações intempestivas (borrões, rabiscos, caricaturas) para se tornar um expressionismo "técnico", por assim dizer, um expressionismo matemático, a frio.
E a ironia dadaísta se volta, com notável agudeza, não sobre uma arte conservadora que interessaria destruir, mas sobre uma técnica moderna, uma pureza do design dominante que terminou servindo à opressão tecnocrática, e não à libertação da espécie humana.
O aspecto ideológico e crítico da obra de Regina Silveira não exclui, ao contrário, favorece o fascínio visual do espectador.
Essa artista plástica reúne, com maestria, os dilemas estéticos do nosso fim de século.
Chamo a atenção para dois livros. O primeiro, editado pela Edusp e organizado por Angélica de Moraes, discute e mostra a obra de Regina Silveira.
O segundo é o livro de poemas de Régis Bonvicino, "Ossos de Borboleta" (editora 34 letras), que tem um texto sobre Regina Silveira.
Bonvicino comenta uma das gravuras extremas da artista: o desenho de um ventilador, distorcido magistralmente e humanizado, por assim dizer, à medida que se recusa a ser objeto técnico, eletrodoméstico, para se tornar pretexto de expressão inconformada e de imaginação plástica.
Bonvicino diz: "O ventilador de Regina Silveira/não tem a empáfia de alguém que é útil... não atenua as temperaturas/ de quem o queira".
Nessa rima (Silveira/queira) podemos ver, aliás, a extrema, quase inconsciente facilidade que Régis Bonvicino tem como poeta.
Seu último livro é, mais do que nunca, tributário do hai-kai, e é na aparente facilidade da inspiração que encontramos sua maior poesia: "Cai uma chuva fina/e o universo/quieto/lá em cima".
Régis Bonvicino precisa da rima, a meu ver, como Regina Silveira precisa do desenho industrial.
Não podem abandonar o virtuosismo técnico, porque respiram esse ar sufocante para subvertê-lo, porque usam a forma banal para fins de distorção expressiva e libertadora, porque fazem da técnica um modo de criticar o predomínio dessa mesma técnica nos dias de hoje.
Distorções, portanto. Grandes distorções. Um estrabismo desesperado e confiante, um "fora de lugar" virtuosístico e desconchavado organiza as perspectivas anamórficas de Regina Silveira.
É a técnica em estado de loucura, colocando o espectador em estado de solidão, de um sem-sentido, à procura de um ponto de vista totalizador que ele próprio não pode atingir.
Assim como a terceira dimensão não existe na perspectiva (pois, na verdade, a técnica pictórica se encarrega da ilusão de fazer as três dimensões virarem duas), Regina Silveira evidencia uma ausência -a da terceira dimensão nas duas de cada obra, a do homem no mundo tecnocrático, a da cor no preto-e-branco de seus desenhos, a do consumidor, a do homem, nos projetos de design, a das sombras na evidência de cada escultura consagrada.
Ela está à procura do invisível, do não-dito, do sombrio que existem na funcionalidade contemporânea, na arte consagrada.
Cada obra sua é como um grito. Não um grito no vazio, grito simplesmente expressivo e patético, mas grito que surge como negação determinada, como crítica e absorção do passado modernista.
Veja a exposição e compre o livro da Edusp, se este texto parecer obscuro demais. É que, diante de uma obra dessa dimensão, o texto sempre sai perdendo.

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