São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 1996
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Livro reinventa Cony

JOHN GLEDSON
ESPECIAL PARA A FOLHA,

em Liverpool
O que é que se pode dizer de um romance cujo narrador "confessa que sempre desejou fazer um conto narrado por um idiota (ele mesmo, narrador) não necessariamente cheio de som e fúria e, aí sim -necessariamente-, significando nada"?
Carlos Heitor Cony reinventou-se: os romances escritos antes do seu silêncio, que durou 23 anos, estavam cheios da angústia dos piores anos do regime militar, que ele corajosamente desafiou.
Agora, temos uma ficção que se descreve como "divertimento": talvez guarde algum rastro do desespero que caracteriza essa ficção anterior, mas está muito bem escondido, presente, talvez, na sugestão, no fim do romance, que a ex-mulher do narrador, apenas aludida no romance, é "uma personagem importantíssima".
Por que? Seria o caso de perguntar. O romance é o produto de uma crise na vida do narrador? Há uma história aqui que não se conta?
A resposta, algo hesitante, do resenhista sisudo é que provavelmente não há. Esse é um divertimento que tem a enorme vantagem de ser divertido.
Junta dois lugares: Rodeio, uma vilazinha do interior do Estado do Rio de Janeiro, na Estrada de Ferro Central, e sede de duas pequenas fábricas, uma de guarda-chuvas e outra de fogos de artifício; e a cidade do Rio de Janeiro.
Põe em cena um grupo de personagens que parecem saídos de um circo: do Gran Circo Tauromaníaco assombro de Damasco, de fato, com seu elenco de seres grotescos, um touro, na verdade boi, um toureiro que matou um padre na Guerra Civil Espanhola, um primo do narrador, Francisco de Assis Rodano, que se crê Lúcifer Encarnado, as duas mulheres, uma ninfomaníaca, outra virgem, que o acompanham, etc.
Mais um adepto do realismo mágico, ouço dizer o leitor com um bocejo desiludido. Talvez, mas deve-se dizer que há uma atmosfera ficcional aqui, não saída de García Márquez, mas das pequenas cidades a duas horas do Rio, na Serra do Mar.
Cony criou um estilo original e envolvente para trazer-nos este mundo e as suas estranhezas: repetitivo, lento e irônico.
Não é necessária muita argúcia crítica para ver que Rodeio, Rodano e Circo estão ligados: e a linha reta do caminho de ferro que liga Rio de Janeiro a São Paulo forma uma espécie de contraponto a este mundo circular.
Ao tom quase folclórico, de contador de histórias, justapõe-se outro para o cenário urbano, mais linear e sóbrio, embora não menos preocupado com seres maravilhosos (sendo o principal uma vaca falante, que se exprime num perfeito francês).
Estamos num Rio zona sul e subúrbio, também habitado por personagens curiosos - meu preferido é Luarlindo, jornalista bêbado e desempregado, vendedor de algodão-doce. Aos poucos, estes dois mundos se fundem, mas, felizmente, não se iluminam mutuamente, nem um é superior ao outro.
Nossa última visão é do narrador, embarcado numa roda-gigante à noite, como se contemplasse tudo.
"Depois de ter lutado e perdido minha guerra particular, estava em paz." Alusão à carreira do autor? Não sabemos. Nem sei ao certo o que sejam o piano e a orquestra, mas tocam uma música bem viva.

Livro:O Piano e a Orquestra
Autor: Carlos Heitor Cony
Preço: R$ 22 Páginas: 306 págs.

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