São Paulo, sábado, 24 de agosto de 1996
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Do general Colin Powell aos meninos de rua

RUBENS RICUPERO

Filho de imigrantes jamaicanos, o general Colin Powell reafirmou na convenção republicana por que não poderá jamais apoiar o desmantelamento, reclamado por setores extremos do seu partido, do sistema de proteção social dos EUA.
Sem o auxílio que ele e sua família receberam de vários programas de governo, nunca o menino negro e pobre do Bronx teria alcançado o posto supremo das Forças Armadas dos Estados Unidos, convertendo-se no mais indiscutível exemplo do "sonho americano".
É oportuno que alguém com a autoridade só conferida pelo êxito pessoal venha lembrar uma verdade hoje contestada: a de que os pobres têm o direito de receber e o governo a obrigação de conceder a ajuda que permita aos mais desfavorecidos sobreviver e competir em condições menos desiguais.
Inspiração de tudo o que se fez desde o "New Deal" de Roosevelt em matéria de ação afirmativa para corrigir as desigualdades, esse princípio acabou criticado e desgastado em razão dos abusos cometidos em sua aplicação.
Alega-se, sobretudo, que uma ajuda fornecida por período ilimitado e sem condições acaba por induzir à aceitação resignada ou indolente da pobreza e da mediocridade como formas permanentes de sobrevivência.
A redução gradual ou a eliminação total da ajuda após certo tempo forçariam, assim, as pessoas a mudar de comportamento e a aceitar empregos que lhes parecem menos atraentes do que o minguado dinheiro do governo.
O argumento impressiona e tem seu fundo de verdade. Os mais ponderados assinalam, porém, que a realidade social é, como sempre, mais complexa.
Para que o novo tratamento produza efeitos, é preciso que os empregos existam e que os assistidos pelo governo recebam a reeducação, o treinamento e o apoio, às vezes até terapêutico, indispensáveis para superarem o estado de dependência.
Ora, tudo isso é difícil e custa muito dinheiro, o que não está nas intenções das propostas de reforma legislativa, interessadas, ao contrário, em reduzir gastos e diminuir o déficit. Na falta desses elementos, a emenda poderá sair pior do que o soneto.
Veja-se, por exemplo, o caso das mães solteiras ou abandonadas, com frequência adolescentes. Há quem chegue a dizer que a garantia de ajuda governamental a cada criança estaria encorajando os nascimentos "ilegítimos", concorrendo para a dissolução da família nos guetos negros.
A fim de eliminar esse importante risco, a reforma em curso nos Estados Unidos obrigaria a cortar pela metade, até o ano 2002, o número de mães solteiras com direito a continuar a receber os benefícios. A outra metade teria de encontrar empregos ou alguma atividade remunerada.
Por desgraça, o número de pessoas afetadas seria enorme. George Will, um dos mais respeitados analistas conservadores da imprensa americana, mas crítico perceptivo das atuais tentativas de mudança da legislação, indicava que, em 1903, a porcentagem de crianças dependentes de auxílio oficial era de 67% em Detroit, de 57% na Filadélfia, de 46% em Chicago e de 39% em Nova York.
E concluía: "Nenhuma criança vai adquirir qualquer progresso espiritual por converter-se em vítima colateral de um bombardeio de medidas severas, que têm por alvo adultos merecedores ou não de tratamento mais duro de parte do sistema de bem-estar social".
É por isso que o "New York Times" considerou a nova lei "não uma reforma, mas uma punição".
Em troca de economias totais que montariam a US$ 55 bilhões em seis anos, haveria o perigo, segundo institutos especializados, de condenar ao nível de pobreza 2,6 milhões de pessoas, das quais 1,1 milhão de crianças.
É preço alto demais para pessoas como o senador Daniel P. Movnihan, que pediu em discurso: "Não machuquem as crianças na base de uma teoria não-aprovada e de hipóteses não-testadas".
O "Washington Post" advertia em editorial: "Seguramente um Congresso cuja maioria se orgulha do título de 'conservadora' deveria hesitar em arriscar criar sofrimento humano em nome de preconceitos inspirados pela ideologia. Não era disso que os conservadores sempre acusaram os liberais?"
Que os pressupostos teóricos de reforma são ao menos duvidosos, pode-se até ver da comparação com o Brasil.
Nós aqui não dispomos dos benefícios do "Social Security Act" de 1935. Deveríamos, portanto, ser um modelo para o pensamento neoconservador.
Nem por isso, infelizmente, deixamos de ter números crescentes de mães solteiras e de nascimentos "ilegítimos". A diferença é que, não havendo garantia de ajuda por filho, alimentamos o exército das crianças abandonadas à rua.
O debate que hoje se desenvolve nos Estados Unidos tem, por essa razão, um valor também por nós.
E nossa inspiração deve ser buscada não nas distorções do "welfare" nem no radicalismo da reforma, mas nos campos da ação afirmativa criteriosa, de que Colin Powell é uma das melhores expressões.

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