São Paulo, domingo, 25 de agosto de 1996
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Restrição externa ao crescimento

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Uma das principais consequências do Plano Real é ter agravado o peso da restrição externa na determinação dos rumos e possibilidades de crescimento da economia brasileira.
A "ancoragem" da estabilização no binômio aumento das importações/absorção de recursos externos constitui um eixo comum aos programas de ajuste, aplicados recentemente na América Latina, com resultados pouco duradouros nos equilíbrios macroeconômicos.
No nosso caso, o desequilíbrio do balanço de transações correntes com o exterior foi amplificado pelos excessos cometidos no ponto de partida do plano: a aceleração brusca e indiscriminada da abertura comercial e a sobrevalorização nominal da taxa de câmbio.
Este tipo de plano coloca o manejo da política econômica dentro de uma camisa-de-força que gira em torno de uma obsessão: a sustentabilidade da regra cambial. A expansão da produção e da demanda interna transformam-se, deste modo, em uma ameaça potencial à própria estabilização.
Preços desalinhados
Por que este aparente paradoxo? Primeiro porque o déficit de transações correntes tende a tornar-se estrutural, isto é, a manter-se elevado mesmo com recessão, o que torna seu financiamento externo cada vez mais difícil e caro do ponto de vista do crescimento do endividamento interno e externo.
Segundo porque, depois de desestruturado o parque industrial existente, colocar restrições severas às importações estimularia o recrudescimento das tensões inflacionárias latentes no sistema econômico. A inflação poderia voltar, alimentada por pressões de custo e de recuperação das margens de lucro das empresas, pelo desalinhamento dos preços relativos ou pela permanência de rigidez na estrutura da oferta interna.
Por qualquer dessas vias, o resultado é o mesmo: geram-se pressões no sentido da desvalorização da taxa de câmbio que podem afetar as expectativas dos agentes econômicos e induzir deslocamentos preventivos de grande amplitude no volume e direção dos fluxos de recursos externos que dão suporte ao esquema de estabilização.
"Moeda forte"
A internalização da imprevisibilidade e instabilidade financeira internacional tende a reforçar o viés contracionista da política de ajuste, para sustentar a credibilidade da "moeda forte" e prevenir os efeitos de eventuais choques externos, como o deflagrado pela crise do México e, mais recentemente e em menor grau, da Argentina (que continuará por tempo indeterminado sem moeda própria).
O esquema de financiamento da economia adotado pelo Plano Real gerou sérios problemas no âmbito das finanças públicas e privadas, os quais realimentam as tensões na frente externa.
A manutenção de elevadas taxas de juros internas para conter a demanda, atrair recursos do exterior e aumentar as reservas internacionais traduziu-se no crescimento exponencial da dívida federal mobiliária.
Os custos de rolagem da dívida interna agravaram os déficits e os desequilíbrios patrimoniais nos vários níveis da gestão pública e privada, desdobrando-se inclusive numa grave crise bancária.
Reservas debilitadas
O aumento do endividamento tende, porém, a debilitar a posição das reservas como "garantia de solvência" do país. A queda da relação reservas/dívida pública interna, de 72,4% em julho de 94 para 38,9% em junho de 96, apesar do forte crescimento das reservas de 45,4% no mesmo período, reflete a fragilização de um dos elementos de suporte do "equilíbrio" financeiro externo da economia.
Dada a importância relativa dos capitais especulativos e de curto prazo na composição das reservas, os indicadores de "solvência" têm um peso enorme na criação de expectativas negativas. Convém lembrar que a crise mexicana estourou quando a relação reservas/dívida pública interna alcançou 20%.
Além das restrições de curto prazo, já estão se configurando problemas estruturais para o desenvolvimento de longo prazo. O movimento de adaptação regressiva do sistema produtivo atingiu fortemente a indústria de bens de capital, que deveria ser a sede de um desenvolvimento tecnológico futuro.
A queda no nível de produção do setor (cerca de 20% nos últimos 12 meses) foi acompanhada de um significativo crescimento das importações, apesar de a taxa de investimento manter-se baixa, em torno de 15% do PIB. Para um "consumo aparente" de máquinas e equipamentos que representa aproximadamente 28% da formação bruta de capital fixo, o coeficiente importado saltou de 34% em 1994 para mais de 47% em 1995.
Desmantelando a indústria
É difícil avaliar o grau de irreversibilidade dos estragos produzidos no setor de bens de capital. É evidente, no entanto, que a consolidação dessa tendência ao desmantelamento da indústria local não tem nada de "virtuosa" e traz pressões adicionais sobre a balança comercial, reforçando as restrições impostas ao crescimento da economia pela capacidade para importar. Qualquer semelhança com épocas passadas, em especial com os primórdios da industrialização, não é, obviamente, mera coincidência.
O tão decantado aumento da produtividade que deveria compensar a sobrevalorização cambial e estimular as exportações é eminentemente espúrio, devendo-se, em grande parte, ao desemprego industrial e à terceirização. A eficiência da infra-estrutura relevante para um aumento de competitividade sistêmica -portos, rodovias, ferrovias e comunicações- só fez deteriorar-se e requer uma estratégia de reestruturação de longo prazo que nem sequer está esboçada dentro do governo.
Assim, não estão à vista nem a diminuição significativa do chamado "custo Brasil" nem o aumento da produtividade que acompanha uma revolução tecnológica de base estrutural, únicos fatores sistêmicos que sustentariam tanto o crescimento das exportações quanto um novo ciclo de expansão da economia.
Quanto à natureza e profundidade da reestruturação empresarial "virtuosa" que ocorre sob o acicate da concorrência externa, há poucos indícios e muitas incógnitas.
Incógnitas a decifrar
Um artigo recente de José Roberto Mendonça de Barros e Lídia Goldenstein ("Gazeta Mercantil" de 12/08/96) mostra os poucos indícios existentes da dinâmica empresarial de ajuste, não coloca as restrições externas, mas reconhece, com certa humildade, o tamanho das incógnitas que é preciso decifrar: "o setor de bens de capital, os setores de tecnologia de ponta, as implicações geográficas das transformações que estão ocorrendo e seus impactos sobre o emprego" (sic).
O tamanho das incógnitas lembra a fábula da esfinge. Espera-se que a equipe econômica não seja devorada ao tentar decifrá-las. Infelizmente para o país, a busca de factóides da "globalização" pode levar a economia mais rapidamente ao "passado" do que qualquer "catastrofista" dos anos 60 ou 70 poderia temer.

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