São Paulo, domingo, 25 de agosto de 1996
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Uma transição adiada

A abertura começou com Médici; a partir do momento em que ele eliminou a guerrilha urbana, ele preparou o terreno
Jarbas Passarinho
Em 1973, havia uma grande pressão de exilados em relação aos crimes cometidos; como é que o governo iria devolver o poder a civis?
Marcelo Rubens Paiva

Continuação da pág. 5-6
Folha - Ainda outro dia, o atual ministro da Reforma Agrária, Raul Jungman, comunista, encontrou-se com o ministro do Exército, general Zenildo de Lucena. Nesse encontro, o Exército cedeu parte de suas terras para a Reforma Agrária. A redistribuição fundiária é uma das ditas reformas de base que estão na origem da intervenção militar de 64. Sei que o senador Passarinho vê com reservas o processo de globalização que engolfa o Brasil na atual onda neoliberal. Acha que o processo tem levado empresas brasileiras à falência. Uma preocupação compartilhada por setores ditos progressistas. Vê-se, portanto, que integrantes do que se convencionou chamar de direita e esquerda têm algo em comum. Eu pergunto: todo esse movimento, que deixou feridas no senador Passarinho e vítimas em famílias como a de Marcelo serviu a que propósito?
Rubens Paiva - Foi um momento sofrido da história brasileira, de bastante retrocesso, em que as Forças Armadas fizeram exatamente o contrário de seu dever, que é o de defender a Constituição. Elas romperam com as leis, rasgaram a Constituição, o que abriu um precedente bastante grave para a sociedade brasileira.
Se, de repente, no poder, eles podem ir contra as leis, eu como indivíduo posso também jogar papel no chão, posso também desrespeitar as leis. E eu imagino que o golpe de 64 se precipitou. Eu acho que, se realmente houvesse o risco, eu também não gostaria de ser governado pelos stalinistas. Mas nem por isso acredito que houvesse necessidade do golpe. Se estivesse em andamento uma revolução comandada por Prestes em acordo com o Jango, como o senador diz, talvez as Forças Armadas pudessem continuar exigindo que se respeitasse a Constituição.
No seu livro, o senador Jarbas Passarinho diz que o golpe de 64 tinha como proposta inicial a devolução do poder aos civis. Foi quase como um golpe temporário. Devia ter sido antes a entrega do poder aos civis. Segundo o seu pensamento, a revolução de 64, tal como ele a conta, ela se cumpriu em 1985, isto é, de 64 a 85 devolveu-se finalmente o poder aos civis. Mas, na minha opinião, é o contrário.
O golpe de 64 foi derrotado em 85 pela sociedade brasileira, bem ou mal. No início, por meio de alguns atos terroristas de algumas organizações. Em seguida, por meio de uma organização pacífica dos estudantes e da sociedade civil, a partir do final dos anos 70, incluindo a campanha pelas diretas, a participação efetiva da igreja, da imprensa, de todos os setores da sociedade civil. Sei que o senador discorda, mas derrotaram o golpe de 64 em 85 com a eleição direta do então presidente Tancredo Neves.
Passarinho - Estamos falando muito sobre história e, se formos analisar no mundo inteiro, havemos de concluir que houve fatos -o que eu chamo muito de "o império das circunstâncias"- que levaram a equívocos.
Se foi útil? Deve ser útil, a partir do momento em que se tirem as lições disso. Nós estamos tirando lição, com divergências. A questão de uma admiração intelectual não significa concordância que eu tenha com o Gorender, por exemplo.
De qualquer maneira, há uma comparação em que, outra vez, o Marcelo incide nela, e eu tento no meu livro mostrar que não é justa.
O Médici aparece como vilão, e o Geisel, como o herói da abertura. As coisas são muito diferentes da realidade. A abertura começou com Médici. A partir do momento em que ele eliminou a guerrilha urbana, ele preparou o terreno. E fez o quê? Ele levou à Presidência da República um oficial da reserva, que já era no nosso ponto de vista a transição. O presidente Geisel, ao contrário, trouxe para a presidência um oficial da ativa, promovido a quatro estrelas com a finalidade de ser o presidente da República, o que já é um pouco diferente.
Médici não cassou um único congressista e foi atacado duramente no Congresso. E o presidente Geisel cassou. Eu não estou condenando o presidente Geisel, estou mostrando que as circunstâncias são diferentes. Ele pegou um terreno vazio e -aí é que eu concordaria com você, Marcelo- poderia ter acelerado o processo.
Para mim, aliás, o momento histórico que nós perdemos de devolução do poder aos civis foi no fim do ano de 1973, no governo do Médici. Porque a situação econômica brasileira era maravilhosa na época. A inflação era de 14,5%. O Delfim manipulou índices? Nunca faria isso. Manipulou o mercado. A nossa dívida externa era de US$ 12 bilhões, as nossas reservas líquidas, conceito de caixa, eram de US$ 6 bilhões.
Era o momento da reconciliação, era o momento de recompor o país. Aí funcionou o que eu chamo hoje de pretexto, não sei se eu estou minimizando o problema da guerrilha do Araguaia. Funcionou a pressão, e o Médici não pôde entregar o poder.
Bom, resta apenas um fato de discordância que eu tenho de interpretação com o historiador, que é o Marcelo: houve uma ação de cima para baixo e houve uma ação de baixo para cima. Houve uma ação de estudantes, da CNBB, dos grupos de pressão. Os grupos de pressão começaram a funcionar, e houve a estafa do poder. Eu estava dentro do poder. Eu via o presidente e todos dizerem, e acho que eram sinceros, que cumpriam aquilo como uma missão, contando o dia em que acabava o seu mandato.
Rubens Paiva - Mas, senador, me parece que os militares saíram meio cabisbaixos, voltaram à caserna com o prestígio bastante abalado. É por isso que eu digo que não saíram vitoriosos. Saíram quase como derrotados.
Passarinho - Não. Não foi vitória de um sobre o outro. As duas ações se conjugaram e acabou havendo uma solução de consenso. Porque quem saiu cabisbaixo, agoniado, desmoralizado, foi o Exército americano do Vietnã. Esse, sim, foi desmoralizado totalmente. No nosso caso, não. Havia cansaço, estafa do poder e havia resistência dentro das Forças Armadas.
Rubens Paiva - Não havia medo de que, entregando o poder aos civis, uma investigação em relação aos crimes pudesse desunir as Forças Armadas?
Passarinho - Não, tanto que eu posso lhe dar como testemunho do que vivi. Não.
Rubens Paiva - Não se adiou a devolução do poder aos civis em função da tortura? As Forças Armadas não teriam uma resposta naquele momento para o caso dos desaparecidos.
Passarinho - Eu não tenho muita facilidade para lhe dar essa resposta, porque eu não teria o fator de decisão sobre isso. Mas, na minha impressão, não. O que eu guardei da idéia foi exatamente essa: está na hora de entregar o poder, já basta. Eram 20 anos de poder. Era preciso realmente encontrar uma fórmula. Tanto que, certa vez, o Tancredo disse a mim, no meu ministério: "Se esse governo for inteligente, apresenta o seu nome, porque 80% da oposição vota em aberto em você". Eu respondi: "Tancredo, isso vai terminar em você. Eu estou ouvindo o que o Figueiredo fala a respeito e vai terminar em você". Tanto que o Ulysses nesse ponto foi prejudicado, porque ele foi o lutador que mais se expôs. E acabou sendo o Tancredo. Por quê? Porque seria uma solução mais moderada.

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