São Paulo, domingo, 25 de agosto de 1996
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Um inverno de dois séculos

NELSON MANDELA
MEUS LORDES, SENHORAS E SENHORES

É com profundo senso de humildade que venho aqui hoje para me dirigir às históricas Câmaras do Parlamento do Reino Unido.
Essa rara honra que os senhores concederam a um orador estrangeiro é indicativa da grande duração, da extensão e proximidade das relações existentes entre nossos dois povos. Aponta para a perspectiva de aprofundarmos ainda mais nossas excelentes relações. Talvez nossa presença aqui, hoje, possa servir para fechar um círculo que já dura 200 anos.
Digo 200 anos porque a primeira vez que este país entrou no nosso, como potência colonizadora, foi no ano 1795. Existem partes de nosso país que até hoje possuem muitas cidades e locais que levam nomes de lugares e personalidades britânicas, algumas das quais desempenharam importante papel no processo da colonização britânica, iniciado em 1795.
Para citar apenas uma dessas partes -o Cabo Leste-, possui nomes como Port Elizabeth, East London, Grahamstown, King Williamstown, Alice, Albany, Somerset East, Fort Beaufort, Fort Glamorgan e, simplesmente, Queenstown (Cidade da Rainha).
É também em Cabo Leste que vamos encontrar o chamado Monumento dos Colonizadores de 1820, erguido em homenagem aos colonizadores britânicos que vieram ocupar terras tomadas de nossos antepassados à força e ajudar a garantir a segurança do espólio, para o benefício da Pátria e do Império.
Tivessem aqueles antepassados a vantagem da educação e do acesso a vossa tão ilustre herança cultural, teriam achado as palavras de um dos cidadãos da peça "Coriolano", de Shakespeare, inteiramente apropriadas para descrever sua atitude em relação à Grã-Bretanha da época. Ouçamos os cidadãos marginalizados e despossuídos daquela época:
"Somos tidos como cidadãos inferiores; os patrícios, como bons;
O que sobra depois que as autoridades se saciam bastaria para nos aliviar...
A escassez que nos aflige, o objeto de nossa miséria,
É como um inventário para detalhar a abundância delas.
Nosso sofrimento é ganho para elas.
Vinguemo-nos com nossas lanças, antes que nos tornemos libertinos:
Pois os deuses sabem
Que digo isto com fome de pão,
E não com sede de vingança".
("Coriolano", Ato 1, Cena 1)
Durante o século que se seguiu ao momento em que esse grito de desespero teria sido ouvido pela primeira vez, o que definiu as relações entre nossos povos foi o estrondo constante das armas, um de cujos destaques militares foi a famosa batalha de Isandhiwana, vencida pelos exércitos zulus.
Oito décadas atrás meus antecessores na liderança do Congresso Nacional Africano vieram a este venerável Parlamento para dizer ao governo e aos legisladores da época que eles, os patrícios, deveriam vir em socorro dos cidadãos pobres.
Destituídos de lanças, porque os Exércitos britânicos os haviam derrotado e desarmado, falaram com paixão e eloquência da necessidade da potência colonizadora tratá-los como seres humanos iguais aos colonizadores de 1820 e outros, vindos da Europa antes e depois de 1820.
Com paixão e eloquência iguais, os governantes ingleses da época discursaram neste Parlamento, dizendo que não podiam e não se dispunham a modificar sua agenda relativa à África do Sul para atender aos interesses do setor de nossa população que não era branco. Apesar dessa recusa e do terrível custo que tivemos que suportar em consequência dela, retornamos a este local honrado não com lanças nem com desejo de vingança, nem sequer com um pedido aos honrados senhores para que venham aplacar nossa fome de pão.
Viemos aos senhores como amigos. Retornamos à terra de William Wilberforce, que ousou erguer sua voz para exigir que os escravos de nosso país fossem libertos. Viemos à terra de Fenner Brockway, que, por meio do Movimento pela Liberdade Colonial que fundou, se preocupava com nossa liberdade tanto quanto com a independência da Índia.
Estamos no Parlamento em que Harold MacMillan trabalhou -ele que discursou em nosso próprio Parlamento, na Cidade do Cabo, em 1960, pouco antes do infame massacre de Sharpeville, e alertou a obstinada oligarquia branca de nosso país, cegada pelo racismo, de que "os ventos da transformação estão varrendo este continente...", ele a quem um cartunista sul-africano rendeu homenagem, colocando em sua boca outras palavras de Shakespeare: "Oh! perdoe-me, pedaço de terra ensanguentada, por ser meigo e gentil com esses assassinos!".
Viemos como amigos de todas as pessoas da terra do arcebispo Trevor Huddleston, que, com sua gentil compaixão pela vítima, optou por não ter piedade de qualquer assassino.
Os sacrifícios que fez em prol de nossa liberdade nos mostraram que a verdadeira relação entre nossos povos não se dá entre cidadãos pobres, por um lado, e bons patrícios, por outro. É uma relação apoiada em nossa humanidade comum e nossa capacidade humana de tocarmos os corações uns dos outros, de um lado do oceano a outro. Viemos até os senhores como amigos, trazendo para os senhores e as nações que representam as calorosas saudações vindas dos corações de milhões de nossos cidadãos.
Mesmo na mais inerte das estações históricas, 200 anos seriam um período longo demais para que a força das transformações não irrompesse em liberdade.
As transformações chegaram também ao nosso país -finalmente, talvez-, trazendo consigo a alegria e a promessa de um futuro melhor e um prolongado festival de esperança que se espalha pelo planeta.
O racismo é uma chaga que desfigura a consciência humana. A idéia de que qualquer povo possa ser inferior a qualquer outro, até o ponto em que aqueles que se consideram superiores definem e tratam os outros como subumanos, nega a humanidade até mesmo daqueles que se atribuem o status de deuses.
Os milhões de sepulturas espalhadas pela Europa, resultados da tirania do nazismo; a dizimação dos povos indígenas das Américas e da Austrália, o rastro destrutivo do apartheid, esse crime contra a humanidade -todos esses são como uma pergunta que flutua ao vento e não pára de nos assombrar: por que deixamos que tudo isso acontecesse?
Parece-nos que, quando as pessoas comuns do mundo compreenderam a verdadeira natureza do sistema do apartheid, decidiram não deixar que sua resposta a essa questão fosse a de apenas abaixar as cabeças, envergonhadas.
Aproveitamos essa oportunidade para mais uma vez render homenagem aos milhões de britânicos que, assim como outras pessoas em todas as outras partes do mundo, se ergueram durante esses anos todos para dizer "não" ao apartheid.
Nossa emancipação é sua recompensa. Sabemos que a liberdade que desfrutamos é uma dádiva de rica textura, moldada artesanalmente por pessoas simples e comuns, que não permitiram que fosse insultada sua dignidade de seres humanos.
Na aceitação dessa dádiva está contido o compromisso assumido por nosso povo de nunca mais permitir que nosso país abrigue racismo. E nossas vozes tampouco irão se calar se virmos outro país, em outra parte do mundo, sendo vítima da tirania racial.
Acima de tudo, porém, acreditamos que nosso compromisso é responder ao desejo de toda a humanidade, incluindo nosso próprio povo, de assegurar que o enorme e contínuo esforço universal que se traduziu na derrota do sistema do apartheid atinja seu objetivo correlato, de transformar a África do Sul num país democrático, não racista, não sexista, pacífico e próspero.
Nenhuma sociedade que saísse do enorme desastre representado pelo sistema do apartheid poderia deixar de carregar as chagas de seu passado. Se a África do Sul tivesse emergido do nada, ela não existiria. A existência que assumiu, ditada por suas origens, constitui uma verdadeira escola de tudo que ainda resta a ser feito para pôr fim ao sistema do apartheid.
Os Jeremias que permanecem à espreita, prontos para culpar o presente pelo passado, ao enxergar os fantasmas do passado que ainda assombram nosso país, acreditam que esses fantasmas representam o fracasso da nova realidade. Esses Jeremias representam um setor que se convenceu de que não conseguiremos construir a bela África do Sul com que nós e milhões de outros, incluindo os senhores, ousaram sonhar.
Entretanto, se não possuíssemos essa capacidade de dar certo, a África do Sul não teria avançado para onde hoje está.
O primeiro alicerce de nosso novo país é a reconciliação nacional e a unidade nacional. O fato de estar firmado já é conhecido de todos.
Não fosse assim, o sangue derramado nas ruas bradaria em voz alta que havíamos fracassado, não conseguindo que fosse aceita a necessidade de nossa população inteira, negra e branca, conviver em paz, como iguais e cidadãos unidos por um destino comum.
Nosso segundo alicerce é o estabelecimento de um sistema democrático que assegura que todos os cidadãos tenham igual direito e possibilidade de determinar seu próprio futuro. Ele proíbe a opção pela tirania e ditadura e assegura os direitos humanos fundamentais de toda nossa população.
Dentro desse contexto amplo, como outras nações, continuamos lutando para encontrar meios e maneiras que envolvam todos os cidadãos no sistema de governo, o mais estreitamente possível, cientes do processo histórico que está redefinindo o papel do político, retirando dessas profissões os poderes conferidos pela noção de que o papel de governar pertencia exclusivamente a elas.
Ademais, reconhecendo a diversidade de nossa sociedade, nossa nova Constituição prevê a criação de uma Comissão de Promoção e Proteção dos Direitos das Comunidades Culturais, Religiosas e Linguísticas.
Isso vai assegurar que nossa população como um todo tenha em mãos um instrumento adicional que lhe possibilite evitar o surgimento de qualquer situação em que tensões étnicas e outras possam nos levar a retroceder para soluções como o apartheid ou a imitar o cruel exemplo da Bósnia.
Nosso terceiro alicerce terá forçosamente que ser colocar fim às enormes disparidades de renda, riqueza e oportunidade, traçadas com base em raça e sexo, que herdamos de nosso passado e cujo impacto continuado sobre nossa sociedade necessariamente prejudica a conquista das metas de unidade e reconciliação nacional.
Aqui nos confrontamos com uma luta prolongada que se encontra estreitamente interligada com nosso quarto alicerce, que será a reconstrução e modernização de nossa economia, direcionando-a num rumo de crescimento forte e sustentável, para pôr fim à pobreza, ao desemprego e atraso.
Nenhum de nós pode subestimar a complexidade do desafio que enfrentamos para deitar esses dois últimos alicerces. Ao mesmo tempo, confiando em nossos próprios recursos e povo e sabendo que somos parte da comunidade mundial de nações, temos todos os motivos para estarmos certos de que iremos conseguir.
Nesse contexto, precisamos nos referir ao sentimento reinante entre a massa de nossa população, que espera -com toda razão- que a liberdade venha acompanhada de uma vida melhor para todos. Mas, como são pobres, esses milhões de sul-africanos compreendem o esforço e o tempo que serão precisos para evoluir do andar descalços para os confortos de uma vida decente.
O que esperam não é um grande salto à frente, mas um avanço constante e visível na melhora da qualidade de suas vidas, em que eles participem ativamente do processo de determinação do ritmo e direção desse avanço e não permaneçam apenas esperando, passivamente, para serem os receptores de benefícios dados por uma autoridade da qual, com essa exceção, se sentem totalmente afastados.
Talvez seja difícil compreender a imensa força criativa liberada entre o povo pelo fato de que, pela primeira vez em séculos, ele conta com um governo que pode, com razão, considerar como seu, e cuja própria razão de existir é servir aos interesses desses milhões de sul-africanos; e também que esses milhões sejam os construtores de uma sociedade em que a lei protege o indivíduo contra qualquer possível tirania do Estado.
É a partir dessa fonte de esperança, compromisso e confiança no futuro que os cidadãos comuns de nosso país estão se apropriando de um conceito que lhes apresentamos, o conceito de "Masakhane" -uma palavra na língua nguni que significa "vamos construir uns aos outros, juntos".
Um alicerce tão importante quanto os outros é o fato de que somos um país africano. Com todas nossas cores e raças combinadas em uma nação, somos um povo africano. Os êxitos que buscamos e precisamos conquistar na política, na economia e no desenvolvimento social são êxitos africanos, que devem fazer parte de um renascimento africano.
Eles se integram em um processo que precisa expulsar as nuvens de desespero que continuam a lançar uma sombra escura sobre nosso continente. Se tivéssemos poderes supremos, há muito tempo teríamos proclamado: "Faça-se a luz!".
Talvez seja nesse sentido que nossa presença aqui poderia, como já dissemos, simbolizar o fechamento de um círculo que, para nós, levou dois séculos para ser desenhado.
Um continente antigo vem sangrando, há séculos, de muitas feridas abertas a golpes de espada.
Em uma época anterior, perdeu milhões de seus filhos e filhas mais capazes para um comércio escravagista que definia esses africanos como dignos da escravidão pelo simples fato de serem africanos.
Continuamos, até hoje, a perder alguns dos melhores entre nós, porque as luzes do mundo desenvolvido brilham mais forte.
Um continente antigo derramou nas mãos de estrangeiros o conteúdo de suas entranhas e a fertilidade de seu solo, aparentemente com tanta profusão que precisou enviar "batedores" até aqui para averiguar se era verdade que as ruas de Londres eram pavimentadas de ouro!
O continente ainda sangra a veias abertas, lutando para pagar os juros de uma dívida externa que não pode suportar, mas que não tem como repudiar.
Quanto mais altos e penetrantes os gritos de desespero -mesmo quando esse desespero resulta em meio milhão de mortos em Ruanda-, mais esses gritos parecem suscitar a reação instintiva de erguermos as mãos para tapar nossos olhos e ouvidos.
As nossas nações têm sido parte dessa tragédia que se desenrola ainda, aguardando aflitas, sem saber que monstro nascido desse sofrimento sobre-humano se arrasta em direção a Belém para nascer, nas palavras de um poeta irlandês.
Mas sabemos, com toda certeza, que nenhum de nós pode se isolar diante de uma escala tão catastrófica de sofrimento humano.
Ao final, os gritos da criança que morre de fome ou daquela que morre porque um facão abriu sua barriga vão penetrar a balbúrdia da cidade moderna e suas janelas fechadas, para dizer: por acaso eu também não sou humano?
Para fechar esse círculo, deixemos que nossos povos, aqueles que eram pobres cidadãos e os que eram bons patrícios -políticos, empresários, educadores, trabalhadores da saúde, cientistas, engenheiros, técnicos, esportistas, artistas, ativistas de entidades assistenciais- se dêem as mãos para consolidar o que conquistamos juntos e ajudar a construir um mundo africano humano, cujo surgimento sirva de testemunho de que nasceu uma nova ordem, na qual cada um de nós é provedor e guardião de seus irmãos.
E assim, neste momento em que fechamos um capítulo que durou dois séculos e abrimos um novo milênio, saudemos o advento do glorioso verão de uma parceria pela liberdade, paz, prosperidade e amizade.
Muito obrigado.

Tradução de Eduardo Matarazzo Suplicy, Lélia Lage Bastos e Clara Allain.

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