São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Doctor Jekyll

JOÃO SAYAD

O economista argentino falava sorrindo e esfregando as mãos calmamente. Um gesto teatral conhecido que eu não sabia a quem associar.
Tentava apaziguar a platéia de banqueiros e empresários, ansiosa por saber o que estava acontecendo com a querida Argentina.
A crise do México provocou grandes transferências de depósitos para fora do país -Uruguai, Suíça e Estados Unidos. A taxa de juros se elevou a níveis inéditos -25% ao ano para um país com inflação nula ou negativa, quer dizer mais do que 25% de juros reais ao ano.
A produção industrial caiu violentamente, o desemprego aumentou até chegar aos 16% de hoje.
O déficit público aumentou, inclusive porque o governo argentino teve que levantar empréstimos no exterior em dólares para compensar a fuga de capitais.
O desemprego permanecerá em níveis elevados por muito tempo. Até que a deflação interna torne os produtos argentinos competitivos. É fácil entender: um peso vale um dólar. Se essa taxa cambial não é suficiente para os exportadores de soja porque os trabalhadores da agricultura ganham US$ 100 por mês, espera-se que os trabalhadores aceitem ganhar US$ 80 ou US$ 75 daqui a uns dois ou três anos, e então as exportações voltam a se tornar rentáveis.
Não há nada a fazer. Desvalorizar o câmbio quebraria o sistema financeiro, reacenderia o processo inflacionário. Aumentar ou diminuir as taxas de juros também está fora de cogitação: em país de taxa de câmbio fixa e plena conversibilidade, a política monetária não existe. Ela sobe ou desce sozinha, conforme a Argentina fica mais confiável ou menos confiável aos olhos dos administradores de fundos lá de Nova York ou mesmo aqui do Brasil.
A única providência que o governo está tomando é reduzir o déficit fiscal, que é muito pequeno -cerca de 2% do PIB argentino no conceito nominal.
Para reduzir o déficit público aumentaram os impostos sobre combustíveis e sobre as exportações! Por isso a deflação necessária para tornar a Argentina mais competitiva em termos de exportação precisará ser maior ainda e mais longa. Pois as exportações vão ficar menos rentáveis. E porque os salários reais, com o imposto sobre combustíveis, vão ser menores. O desemprego, portanto, ainda deve crescer e durar mais tempo.
Indagado pela platéia por que o déficit público seria importante, o palestrante, de forma simpática, respondeu que o déficit público é igual contabilmente ao saldo da balança comercial(!!).
A Argentina segue o padrão-ouro estritamente. Um regime monetário e cambial que prevaleceu no mundo desde o começo do século até o início da Primeira Guerra Mundial.
Depois da Guerra, todos os países tentaram voltar ao sistema. A tentativa não deu certo. A Inglaterra não era mais o centro financeiro do mundo, os trabalhadores já sindicalizados não aceitavam mais reduções de salários nominais.
Não se pode dizer que o resultado da tentativa foi o culpado de tudo o que se seguiu. Mas vale a pena lembrar que entre as duas grandes guerras tivemos vários episódios de hiperinflação na Europa Oriental, grande desemprego na Alemanha (que propiciou o caldo de cultura do nazismo) e a Depressão de 1929.
Evidentemente, o mundo hoje é diferente. Mas a Argentina tenta reproduzir o passado. Devemos agradecer aos autores do Plano Real por terem sido mais prudentes, mais jeitosos e brasileiros do que radicalmente argentinos.
Muito obrigado. Mas apesar do jeitinho, se continuarmos assim ficaremos cada vez mais parecidos. E, diferentemente do início do século, estamos umbilicalmente ligados ao país irmão ainda que a ligação, hoje, não passe apenas por Londres, podendo vir diretamente pelo rio Paraná.
O auditório era um desses anfiteatros onde as poltronas da platéia ficam em degraus muito íngremes, dispostas em círculo em torno do palestrante. Parecia a sala de aula onde o dr. Jekyll se transformava no monstro mr. Hyde.
O palestrante, esfregando uma mão na outra e sorrindo, lembrava um cientista malvado e ansioso por saber o que aconteceria com a proveta de experiências quando parasse de ferver e borbulhar.
A cena era impressionante. Tudo muito estranho. Sentia-me deslocado no espaço e no tempo. Não era só uma sensação desagradável: estava mesmo em São Paulo em 1996.

Texto Anterior: Martelo no ar; Problemas alheios; Iniciativa própria; Desempenho destacado; Em incorporação; Banco no vermelho; Novo supermercado; Compra de materiais; Parceira no Mercosul; Base sólida; Gatos e lebres;
Próximo Texto: O fim do monopólio do IRB
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.