São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 1996
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Marxismo vive boom acadêmico no Brasil

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os adversários costumam dizer que o Brasil é o último lugar em que o marxismo ainda encontra público e é levado a sério. Talvez por teimosia, para não deixá-los sem a piada, há mesmo um boom do marxismo no país.
O fenômeno, que para muitos soa tão estranho quanto um raio em dia de céu azul, não tem nada a ver com os operários (ou os desempregados) do ABC, não é obra de políticos, nem está ligado ao PT que agora diz sim. Nada disso.
A nova onda marxista é estritamente acadêmica. Coincidência ou não, um seminário que começa hoje na USP, uma nova revista (leia texto abaixo) e pelo menos quatro livros que estão sendo lançados por alguns dos mais importantes intelectuais do país têm no legado de Karl Marx (1818-1883) o seu denominador comum.
Como os tempos são bicudos, este marxismo brasileiro escaldado pelos fatos está sendo escrito com "a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Mas, ao contrário da obra do finado Brás Cubas, não sabe ainda ao certo "o que poderá sair deste conúbio".
Não se trata mais de alimentar ilusões comunistas. Ninguém mais aposta, como o Marx de "A Ideologia Alemã", da qual o seminário promovido pela USP comemora os 150 anos, na viabilidade de uma sociedade onde cada um poderia "caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar", sem tornar-se caçador, pescador ou crítico.
O problema é outro. Depois do sarampão neoliberal que, este sim, no Brasil e fora dele varreu a vida do espírito e ainda dá as cartas na política, começa a tomar força a idéia de que, já que o capitalismo venceu a batalha e está sozinho em campo, chegou a hora e a vez de levar a cabo a sua crítica.
Para falar como o filósofo Paulo Arantes, um dos responsáveis pela retomada do marxismo ocidental no Brasil, trata-se de separar "no interior do marxismo um lado morto, o marxismo do movimento operário e sua ontologia positiva do trabalho, e o outro lado, este sim, muito vivo e letal, o momento negativo da crítica do fetichismo da mercadoria, nele incluída a regressão cultural e social desentranhada metodicamente pelos (filósofos) frankfurtianos".
É este espírito de crítica hiperbólica ao reino encantado da mercadoria, sem nenhuma possibilidade de reconciliação ou saída histórica à vista, que emana do livro "O Fio da Meada - Uma Conversa e Quatro Entrevistas sobre Filosofia e Vida Nacional", que Arantes acaba de lançar na Bienal.
Em setembro, o mesmo autor lança "Ressentimento da Dialética", reunindo ensaios sobre as origens do pensamento hegeliano e seus desdobramentos na vida intelectual alemã do século 19.
Além dele, o filósofo Ruy Fausto, atualmente lecionando em Paris, lança em breve mais um de seus livros sobre o marxismo, intitulado "O Modo de Produção Capitalista como Circulação Simples". É o primeiro volume de uma série batizada de "Dialética Hegeliana e Dialética Marxista", que vem somar-se à outra série do autor, intitulada "Marx: Lógica e Política", da qual já saíram dois volumes.
Mas, se os filósofos, sobretudo os brasileiros, voltaram a interpretar o mundo diante da impossibilidade de revolucioná-lo, a relação entre teoria e prática permanece como problema. Ou, em outras palavras, quando não há mais nada o que fazer para livrar o mundo da selvageria em curso, o que fazer?
A questão, algo etérea, ganhou uma atualidade inesperada no Brasil desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso. O que fazer, diante do governo FHC? A resposta de Arantes é clara: lavar as mãos, criticar e sobretudo não participar.
Posição oposta tem o filósofo José Arthur Giannotti, outro luminar do marxismo brasileiro, cuja posição a respeito do governo FHC pode ser resumida na equação "criticar sim, mas botar a mão na massa e apostar no reformismo".
Desde que publicou, em 95, seu livro sobre Wittgenstein, "Apresentação do Mundo", Giannotti é acusado de ter jogado fora a criança marxista, que cultivou durante décadas, junto com água do banho. Para mostrar que seus críticos estão errados, o filósofo prepara seu novo livro, cujo título é "Uma Certa Herança Marxista".
Uma mostra do que será a volta de Giannotti a Marx e um balanço do marxismo no Brasil poderão ser vistos a partir de hoje na USP. Como na canção de Chico Buarque, dizem que o indigente morreu. E, no entanto, ele se move.

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