São Paulo, terça-feira, 27 de agosto de 1996
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Rasteira na Constituição

OSIRIS LOPES FILHO

Está em debate em comissão do Congresso o projeto de lei complementar nº 95/96, apresentado pelo deputado Antonio Kandir. Trata-se de ampla disciplinação do ICMS, o tributo de maior abrangência existente no país.
A população não dá muita bola para esse imposto, pois não o vê. O contribuinte brasileiro só esperneia quando vê o tributo, como ocorre no Imposto de Renda, no IPTU, no ITR, no IPVA. Não vendo o imposto, não berra, pois desconhece o fenômeno da transferência da carga tributária.
Os meios de comunicação têm divulgado apenas um tópico do projeto. O que estabelece a não-incidência do ICMS sobre produtos semi-elaborados e primários submetidos à exportação.
Há uma corrente que estabelece ser objetivo estratégico do país desonerar os bens exportados da incidência de impostos para torná-los mais competitivos no mercado externo, via redução de preços.
A Constituição atual distinguiu os produtos semi-elaborados dos industrializados. Assim dispõe, no seu art. 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea "a", que "o ICMS não incidirá sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semi-elaborados definidos em lei complementar".
O objetivo foi de preservar as receitas estaduais do ICMS, beneficiando com a não-incidência do ICMS apenas os produtos industrializados, que necessitam de preços baixos para enfrentar a concorrência internacional.
Com base no mesmo artigo da Constituição, apenas variando o inciso, agora o XII, alínea "e", que possibilita "excluir da incidência do ICMS outros produtos além dos mencionados no inciso X alínea 'a"', pretende o projeto Kandir revogar a lei complementar nº 65/91, que define os semi-elaborados, e retirar da incidência do ICMS todos os produtos primários e semi-elaborados.
Lei complementar não pode reformar a Constituição. Tem que viabilizá-la, harmonizando-se com suas determinações. A regra geral estabelecida é a de que os semi-elaborados exportados estão submetidos à incidência do ICMS. Dentre esses, alguns podem ficar fora da sujeição ao ICMS, mas não todos.
A tese de que a desoneração do ICMS facilita a colocação do produto primário e semi-elaborado no exterior, por lhes dar preços mais competitivos, não corresponde à realidade. Tais produtos são "commodities", que têm os seus preços fixados nas bolsas de mercadorias. A desoneração vai colocar mais dinheiro na mão do exportador. Não terá o efeito de dar maior competitividade ao produto exportado. Vale dizer, eventual redução de preços não acarretará sensível aumento de sua procura.
Em verdade, o que se objetiva é remendar, na área tributária, um problema cambial. O real está sobrevalorizado. Isso incentiva as importações e desestimula as exportações. Com a não-incidência do ICMS nas exportações, pretendida no projeto Kandir, ter-se-á uma nova taxa cambial favorecida para o exportador: o valor em reais da exportação mais o montante do ICMS que deixou de ser pago. Os exportadores estão agradecidos.
O dramático dessa situação é que a maioria dos Estados não tem como resistir ao duro golpe nas suas finanças, já combalidas. Em troca de alguns dinheiros, prometidos para o amanhã, como resultado das consideráveis perdas de arrecadação que terão, estão a topar a destruição do federalismo fiscal e a ofensa à Constituição.
A perda de arrecadação do ICMS, segundo estimativas oficiais, é em torno de R$ 4 bilhões para o ano de 1997. Se os tecnocratas brasilienses falam nessa quantia, ela deve ser, no mínimo, de R$ 6 bilhões. A negociação é a de que a União vai repor a perda estadual, durante seis anos, com títulos públicos e, possivelmente, dinheiro.
Não há bolo de graça. Os recursos que o governo federal mobiliza provêm substancialmente dos tributos que arrecada. O ressarcimento aos Estados pela perda da arrecadação deverá ser recuperado pela União, mediante a elevação dos impostos federais.
Como sempre, os bons contribuintes vão terminar tendo uma elevação da carga tributária. E os sonegadores, gratos, vão continuar na impunidade.
Esse projeto Kandir não pode ser aprovado a toque de caixa. Afinal, não estamos na ditadura para que se imponha ordem unida ao Congresso Nacional. É necessário discuti-lo, pois a sua abrangência é ampla. Disciplina todo o ICMS. Um projeto desse teor, eivado de inconstitucionalidades, não pode prosperar sem um debate em que participe toda a sociedade brasileira, que será atingida por sua repercussão.
É hora de acatar a palavra de ordem do presidente Fernando Henrique Cardoso -"Acorda, Brasil". É chegada a hora de acordar para discutir o futuro da Federação e a proteção dos bolsos dos cidadãos, gravemente ameaçados.

Osiris de Azevedo Lopes Filho, 56, advogado, é professor de direito tributário da UnB (Universidade de Brasília). Foi secretário da Receita Federal (governo Itamar Franco).

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