São Paulo, sábado, 31 de agosto de 1996
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Temos mártires da fome e da indigestão

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A violência com que o presidente francês, Jacques Chirac, expulsou em Paris, de dentro de uma igreja onde se refugiavam, 300 africanos "sans-papiers", isto é, sem-documentos, dá uma clara idéia da importância, no mundo globalizado, dos que são "sem".
Os "sans-papiers" expulsos da igreja de Saint-Bernard por Chirac correspondem aos nossos sem-terra. Não possuem. Não têm. Cidadãos da nação dos "sem", preposição negativa, "sine".
Chirac, que andou explodindo as bombas atômicas que quis, no atol de Mururoa, e que, segundo sua mulher, Bernadette, é um desses maridos que exigem silêncio absoluto quando assistem a um jogo na TV, provavelmente me responderia que o governo brasileiro não divide direito as terras inacabáveis do país porque não quer. A França, ao contrário, jamais poderia transformar em cidadãos franceses todos os estrangeiros que entram no país clandestinamente: em breve não haveria mais na França lugar para os franceses. Os ingleses também tratam de impedir a entrada de ex-colonos na Inglaterra. Os americanos fecham aos mexicanos sua fronteira sul. Trata-se da guerra por excelência dos nossos tempos. Dos que têm contra os "sem".
Em última análise, nossos sem-terra, os "sans-papiers", os sem-passaporte britânicos, os sem-trabalho do México são todos sem-comida. A fome sempre acompanhou o homem, dirão muitos, dando de ombros. Um otimista como o dr. Pangloss de Voltaire diria mesmo que sem ela não teriam surgido o homem, as artes e civilizações. A luta pela vida é que produz a própria qualidade da vida.
Nisso estamos todos de acordo. Exceto, naturalmente, os "sem". Esses querem sempre trocar de lado. Entrar na fila dos hambúrgueres. Hoje em dia, como se sabe, o melhor meio de calcular, em qualquer momento, o valor de qualquer moeda do mundo é apurar quanto custa, na dita moeda, o sanduíche hambúrguer. O hambúrguer é pão, é sangue, é hóstia. Inventado, naturalmente, nos Estados Unidos, transformou-se no símbolo sagrado dos que têm. Dos que dominam os "sem".
O que se poderia imaginar, diante de um explosivo mundo onde crescem sem cessar os "sem"', é que aqueles que têm, que vivem bem, estariam o tempo todo pensando em que fazer para alimentar também os que não sabem como fazê-lo. Só assim se evitará um surto mundial de revolução. Mesmo sem o ouro de Moscou.
Ora, eu não diria que não há bibliotecas inteiras, de Malthus a Josué de Castro, sobre o aumento das populações e da fome mundial. O curioso é que há também, em igual ou até maior quantidade, a produção e a reedição de livros dedicados exclusivamente à arte de comer bem.
No momento em que escrevo, quatro livros de culinária me tentam, recentemente editados: o imortal "A Fisiologia do Gosto", de Brillat-Savarin, "Um Alfabeto para Gourmets", de MFK Fisher, "Comer como um Frade", de Frei Betto, e "Um Banquete de Palavras", de Jean-François Revel.
São todos livros gostosos, no sentido absoluto de que nos ensinam a fazer quitutes, mas também nos lembram às vezes épocas difíceis, em que os cozinheiros se viam ameaçados de ser cozinhados. Vejam o caso de Brillat-Savarin, que viveu de 1755 a 1826. Quase foi parar na guilhotina, durante o Terror. Só retornou à França sob as graças de Napoleão. Mas nunca deixou de pensar em suas sopas, doces e vinhos.
Frei Betto esteve em cana durante a ditadura do atual deputado Roberto Campos, mas nem assim largou o fogão, como conta no livro: "Preso político, tive oportunidade de aprimorar os dotes culinários que herdei de minha mãe. (...) A falta de melhores recursos e a participação de outros cozinheiros despertavam a nossa criatividade. Num pequeno fogão elétrico de quatro bocas cheguei a preparar refeições para 50 companheiros".
No suculento "Um Banquete de Palavras", de Jean-François Revel, o leitor pode realmente se sentar à mesa, segurar faca e garfo e viajar da lebre de Aristófanes e do javali de Petrônio aos Médici e à internacionalização atual de pratos que são deliciosos onde nascem mas que "viajam mal", segundo Revel, como a lasanha, o mole mexicano e a feijoada brasileira. Não encontrei referência de Revel ao hambúrguer, como se ele achasse que há limite para tudo. Na grande cozinha cabem até mártires, mas não sanduíches.
Dois mártires aparecem em "Um Banquete para Palavras", Apicius e Vatel. Gavius Apicius fez o maior sucesso nas colunas sociais do início da era cristã. Enfureceu Sêneca, pois atraía "os jovens que, vinte anos antes, frequentavam as escolas dos filósofos e dos mestres de retórica, e agora se amontoam em sua cozinha como nas aulas de um mestre pensador". Sêneca, pelo visto, era um tremendo rogador de praga. Apicius acabou se suicidando "por medo de morrer de fome após ter gasto em refeições uma fortuna de 100 milhões de sestércios", segundo Revel o equivalente a 27 milhões de francos-ouro. Apesar de ter inventado extravagâncias como "o método de empanturrar as porcas com figos secos e vinho com mel para engordar seu fígado e a receita para preparar a língua do flamingo e o calcanhar do camelo", Apicius acabou respeitado. Codificou, em sua obra, "a cozinha da antiguidade, a grega como a romana".
Quanto ao mártir Vatel, ele se insere no mundo complicado da alta nobreza da França seiscentista. Conta Revel: "Vatel, imortalizado por seu suicídio, jamais foi um cozinheiro: ele era oficial de boca do príncipe de Condé e, nessa qualidade, responsável pela organização e o abastecimento, em particular na noite fatal em que Condé recebeu o rei. (...) Como sabemos por madame de Sévigné, Vatel suicidou-se (1671) porque as provisões com as quais contava não chegaram a tempo. (...) Herói de tragédia, se não tivesse se suicidado, teria sido assassinado ou pelo oficial de cozinha ou pelo dono da casa". Vatel varou-se com a própria espada.
Não se diga que, em "Um Banque de Palavras", Revel só fala nos que passam a vida se banqueteando. Antes, por exemplo, de nos informar que havia pães nutritivos e baratos para o povo miserável da Idade Média, ele lembra, penalizado, como fazemos todos nós: "Infelizmente, o povo não come o que quer, como o que encontra -quando o encontra". Mas a verdade é que mal caberiam, num livro como o dele, considerações sobre os sem-comida.
Tais considerações -permanentes, angustiadas- deviam ser nossas. Nossas, repito, e não só do meu amigo Betinho, que aliás anda meio desaparecido.

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