São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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A peregrinação ao símbolo da pedra

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde sua estréia com "Azul Navalha" (1988), Donizete Galvão manifesta a necessidade de organizar seus livros em torno de um motivo nuclear.
Por trás de "Azul Navalha", havia o azul de Yves Klein e uma gravura de Fayga Ostrower; em "As Faces do Rio" (1990) o ponto de partida foi "Ocean Greyness", do pintor Jackson Pollock. Este procedimento, além de expressar um impulso visual, um corpo-a-corpo com as artes plásticas, define uma operação criativa singular.
A leitura desses primeiros livros já nos permitia alinhavar algumas marcas registradas do poeta: um zôo doméstico, composto por gatos secretos, pássaros e peixes que dançam na água, gado trilhando a mata; a técnica de desentranhar poesia de uma foto de W.H. Auden, de um retrato da russa Anna Akhmátova ou de uma entrevista com Joseph Brodsky; as coreografias corporais do bailarino espanhol Antonio Gades ou a visão trágica de Nijinsky; e, por fim, as seduções do suicídio e do abismo.
Diante deste quadro, qual a novidade e a importância de "Do Silêncio da Pedra", que acaba de ser publicado?
Este livro, ao que tudo indica, encerra um ciclo poético. O sujeito parece ter alcançado um alto grau de maturidade, mescla de decantação formal e exercício da individualidade. Donizete demonstra grande habilidade ao manter a trama dos sentidos sempre por um fio. Arriscado fio da navalha em que convivem lirismo delicado e imagens do abismo.
É contra esta precariedade do ser que surge o "duro desejo de durar" extraído de Paul Eluard. A dualidade dramaticamente expressa na cisão e na dissonância dos títulos anteriores, "azul" e "navalha", "faces" e "rio", esboça neste último livro uma superação dos antigos impasses.
Ao eregir a pedra como núcleo central do seu novo trabalho, o poeta revisita um dos símbolos mais caros à poesia moderna brasileira. Se em Drummond, porém, a pedra representa uma ossatura do obstáculo ou modulações do enigma; se em Cabral atua como princípio construtivo e textualidade pedagógica; em Donizete, ela volta a ser morada dos deuses, abrigo contra as dores do mundo, celebração em recolhimento.
Entre a epígrafe de Octavio Paz -"Como as pedras do Princípio/ Como o princípio da pedra/ Como no Princípio pedra contra pedra"- e os versos de Rilke que encerram e nomeiam o volume -"Celebrar é preciso! Quem foi destinado a celebrar,/ Nasceu, como o minério, do silêncio da pedra..."-, Donizete arma sua equação: fim e origem, sacrifício e dança, fóssil e fundação.
O universo urbano de "Azul Navalha" abre passagem ao mergulho abissal de "As Faces do Rio". As imagens migraram para o poço da memória. "Do Silêncio da Pedra" aponta para uma nova paisagem biográfica, localizada na Borda da Mata, em que irrompem as imensas pedras que enformam as montanhas do sul de Minas. A memória se transforma em mito: narrativa petrificada.
No outro extremo, ampla paisagem literária, está a presença do Octavio Paz de "Libertad Bajo palabra" (1935-1957): "La Roca", "Entre la Piedra y la Flor", "Piedra de Toque", "Piedras Sueltas", "Piedra de Sol" e principalmente, "Piedra Nativa".
Presente tanto na epígrafe de "Azul Navalha" quanto na "Do Silêncio da Pedra", Octavio Paz se situa como uma ponte fundamental para esclarecer a peregrinação de Donizete até o símbolo da pedra. A exemplo do poeta mexicano, Donizete penetrou na esfera do sagrado: religiões em rotação: "Tróia Sete Vezes Destruída", "O Sol do Egito", "Ex-voto Mineiro", "Almas de Mojave". O pesadelo da história ocidental encontra a plenitude vazia do Oriente.
Trilhando um caminho independente, Donizete conseguiu com este novo livro sedimentar as bases de sua experiência poética, que, sem ser dada aos exercícios da razão, possui uma dicção reflexiva. A busca de uma coerência interna torna-se visível em pequenos detalhes, como a meditada articulação criada entre o título da obra, um pensamento de Valéry, e a litografia de Renina Katz, "Aleluia 2", logo no início do livro.
"Do Silêncio da Pedra" parece ser o resultado de uma maturada reflexão que finalmente encontrou sua forma.

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