São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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O afeto de um olhar para a história

MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quase dois meses após a morte de Alcir Lenharo (1946-1996), ocorrida no dia 7 de julho, ainda é difícil escrever esta despedida. Mais que falar do amigo, devemos a ele um balanço da contribuição que ofereceu aos historiadores distraídos em relação a temas fundamentais da história cultural do país. Mérito de um trabalho, de resto, pouco reconhecido em seus desdobramentos mais recentes.
O Alcir mais conhecido dos historiadores é aquele que produziu dois trabalhos, hoje tidos como clássicos sobre seus respectivos períodos. "As Tropas da Moderação" (1979), que constitui uma das mais instigantes análises de um período pouco estudado da história brasileira -o início do século 19, visto por meio do comércio interno dos tropeiros e "A Sacralização da Política" (1986), que renovou profundamente as formas de abordar um período dos mais tratados e menos compreendidos da história brasileira -o Estado Novo.
Deslocava-se com facilidade, como se vê, entre períodos, abordagens e fontes. Uma rápida olhada no conjunto de sua obra pode confirmá-lo: livros e artigos sobre Adoniram Barbosa e a cidade de São Paulo, a "marcha para Oeste" do período Vargas, o nazismo e seus significados do ponto de vista da comunicação, o cinema e particularmente as chanchadas da Atlântida.
No interior desta produção, e com certeza cada vez maior, o tema da massificação da cultura despontava como um eixo ordenador das suas preocupações e pesquisas. Falou muito sobre isto em conferências, seminários e aulas com a paixão que seu trabalho sempre lhe despertou e da qual foram testemunhas centenas de profissionais de sua geração e alunos que ele ajudou decisivamente a formar.
Mais apaixonado que tudo, no entanto, ele foi pelo que costumava chamar a "cultura do rádio". Sou testemunha do começo desta história, origem nada acadêmica, em noitadas compartilhadas com amigos, regadas a uísque e a uma envergonhada (de minha parte) nostalgia mesclada com risadas, nas quais disputávamos quem sabia cantar mais dos boleros e canções que ouvimos no rádio da nossa infância.
Mas para ele não eram apenas "horas da saudade". Textos, cursos e orientação de trabalhos em torno das temáticas relativas à massificação da cultura, particularmente nos anos 1930 a 1950, seguiram-se a este primeiro momento entremeados com instantes inesquecíveis da convivência pessoal: a volta de Ângela Maria e Cauby, o improvável retorno -oh little darling- de Lana Bittencourt em um obscuro teatro do centro e muito mais.
Um destes shows que vimos juntos, em uma boate cujo nome já não me lembro, foi da inesquecível Nora Ney. Cheia de dignidade, apresentava-se isenta de qualquer folclore saudosista. Foi neste dia que Alcir me revelou a nova empreitada em que se lançava: o trabalho solidário e desafiante, para um historiador com seu perfil, de dar forma às memórias de Nora e seu marido, o cantor Jorge Goulart, que desejavam deixar registrados seus testemunhos sobre os anos dourados do rádio (mas cinzentos da política, para dois artistas comunistas que atravessaram o Estado Novo e o regime militar pós-1964). A cada encontro com o casal de artistas, o fã e o historiador, com uma visão cada vez mais aguda sobre aquilo que os depoimentos lhe traziam, iam se mesclando na definição de um perfil inovador. Pois Alcir não desempenhou aí o papel -em todo caso digno e necessário- de um simples "ghost-writer" dos artistas. Ele conseguiu, em uma delicada ourivesaria, entrelaçar estes depoimentos com uma pesquisa original, calçá-los com contextos delineados com muita precisão e sutileza, fazê-los dialogar com a história, ultrapassando a dimensão da memória pessoal e afetiva ou da exposição de curiosidades que costumam marcar este tipo de abordagem.
O resultado final foi, como acontece sempre no meio acadêmico, mais um livro. "Cantores do Rádio - A Trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o Meio Artístico do Seu Tempo" (1995). Alcir emocionou-se por ter conseguido concretizar o sonho dos cantores que queriam imortalizar no papel impresso suas memórias. Mas havia mais o que saudar aí, tratava-se de uma obra capaz de apontar novas perspectivas para o trabalho de historiadores debruçados sobre o período e sobre temas da cultura. Talvez, por isso, tenha parecido um tanto estranho a alguns círculos.
Sendo o melhor livro de Alcir Lenharo -todos de excelente qualidade, como mencionei- não mereceu nem sequer uma resenha em revistas acadêmicas ou na imprensa. Alguns devem ter olhado com desdém a um livro fácil demais de ler. Outros, secretamente, consideraram o tema indigno das pautas historiográficas e jornalísticas. Alguns outros podem ter se sentido levemente constrangidos diante de um tema cuja importância intuiam, mas cuja dificuldade inibia aventuras interpretativas. Seja por que for, "Os Cantores do Rádio" mais uma vez foram condenados ao silêncio.
Creio que não poderia prestar a Alcir Lenharo melhor homenagem que lembrar sua risada roncada, dizendo a todos os que ignoraram o valor e a importância fundamental de sua obra: "Vocês não sabem o que perderam!". Para os que sabem, no entanto, restam as valiosas indicações que seu trabalho nos legou como uma herança dolorosamente prematura.

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