São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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Debate sobre pena de morte vira 'Bingo da Hebe'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa entrevista recente ao caderno Mais!, Carlos Heitor Cony forjou uma imagem muito feliz ao comparar o alto executivo de hoje, enclausurado em seu escritório, ao homem da caverna. Ambos são trogloditas típicos, sugeriu Cony.
Apesar do computador, do celular, do carro importado -ou por causa deles mesmo-, o executivo age como um quadrúpede atrás da sobrevivência: "eu sou mais forte, o que posso te arrancar, como vou transformá-lo num veículo de satisfação dos meus interesses?".
Essas imagens de Cony a respeito do espírito da nossa época, marcada pela concorrência atroz, pelo individualismo mais selvagem, pela perda de qualquer sentido de solidariedade, têm um alcance ainda maior do que o vislumbrado pelo escritor.
Que se pense, por exemplo, no frívolo e aparentemente inofensivo programa de Hebe Camargo. Na última segunda-feira, exibindo o sorriso de praxe, a apresentadora lançou a seguinte "pergunta premiada": você é a favor ou contra a pena de morte? Se o sujeito fosse a favor, deveria telefonar para o número "x". Caso contrário, era só discar o número "y".
Todos os que telefonaram concorreram a dois carros importados. É difícil imaginar o que passa pela cabeça de quem participa desse tipo de enquete.
Num momento em que a violência se transforma no grande tema da mídia, em que o pânico se mistura à indignação, em que palavras de ordem pela paz se confundem com desejo de vingança e ódio aos pobres, enfim, no meio desse caldo de cultura que empurra a sociedade ao imediatismo, um programa de TV se beneficia da estratégia mais regressiva e do discurso mais oportunista para sortear carros importados e faturar em cima.
Trata-se de um escárnio, da espetacularização da selvageria, da perda de qualquer superego social capaz de sustentar o convívio humano em bases civilizadas.
A cada enquete como essa nos tornamos mais estúpidos, mais embrutecidos e mais parecidos com o inimigo que queremos eliminar. Somos mesmo todos trogloditas. Do conforto dos nossos carros importados, com um celular na mão e o ar condicionado refrescando nossas nucas, condenamos à morte e ao inferno os assassinos que nós mesmos ajudamos a criar.
*
É quase obrigatório comentar os oito anos do "Jô Onze e Meia", comemorados na sexta retrasada com uma entrevista com o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Longe do ambiente circense do seu estúdio, onde dispõe de recursos humanos e cênicos para explorar o lado humorístico do programa, Jô parecia estar perdido no gabinete presidencial do Palácio da Alvorada. Cercado por livros e uma atmosfera fria, o programa lembrou muito, em matéria de sonolência e monotonia, o extinto "Crítica & Autocrítica", que a "Gazeta Mercantil" exibia aos domingos pela Rede Bandeirantes.
É verdade que Jô fez direitinho a lição de casa. Levou uma pauta detalhada e foi passando em revista, um a um, todos os temas considerados relevantes ou atuais.
A entrevista, no entanto, esteve próxima do fiasco. Fernando Henrique discursou e abusou do jargão econômico que aprendeu a dominar, mais do que respondeu ao entrevistador. Este oscilou entre longos períodos de silêncio, como um aluno bem comportado, e interrupções afoitas, que truncaram na hora errada a fala presidencial.
Desarmado diante de FHC, Jô repetiu com o presidente o hábito que tem de chamar os entrevistados pelo prenome, forjando um clima de falsa intimidade que é próprio de seu programa. Neste caso, o recurso não caiu bem.
Mais uma vez ficou claro que Jô é um "showman" talentosíssimo e um mau entrevistador. No programa com FHC, o público ficou apenas com este último.

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