São Paulo, segunda-feira, 2 de setembro de 1996
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Júri popular leva emoção a julgamento, diz Mariz

ANDRÉ LOZANO
DA REPORTAGEM LOCAL

O segundo adiamento, na semana passada, do julgamento dos acusados do assassinato da atriz Daniella Perez e as manifestações populares de pressão dos jurados abriram discussão em torno do Tribunal do Júri.
Os advogados de Guilherme de Pádua e de Paula Thomaz afirmaram que eles estavam sofrendo um "linchamento público".
O advogado criminalista e ex-secretário da Justiça e da Segurança Pública de São Paulo, entre 1990 e 91, Antonio Claudio Mariz de Oliveira, 51, defende a existência do Tribunal do Júri como "instrumento democrático" da Justiça, mas reconhece que a exposição dos jurados às pressões da sociedade e ao noticiário exaustivo sobre o assunto podem influenciar suas decisões. A seguir, os principais trechos da entrevista de Mariz de Oliveira à Folha.
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Folha - O julgamento dos acusados do crime da atriz Daniella Perez suscitou o debate sobre a eficácia do Tribunal do Júri. O senhor é a favor desse tipo de instrumento da Justiça?
Antonio Claudio Mariz de Oliveira - O Tribunal do Júri tem por objetivo fundamental fazer com que os crimes contra a vida, que são quatro -homicídio, infanticídio, aborto e instigação ou auxílio ao suicídio-, sejam julgados por membros da sociedade. Eles devem ser julgados por pessoas comuns porque envolvem uma carga humana muito forte. São crimes em que as paixões (ciúmes, ódio, vingança) estão sempre presentes. Com exceção daqueles casos de homicidas profissionais que são pagos, é a própria vida que arma situações que levam à conduta delituosa específica do homicídio. O homicídio é um crime de ímpeto. Ele, muitas vezes, é praticado no calor de uma situação de vida qualquer, por isso, é importante que todas as circunstâncias que o rodeiam sejam levadas a julgamento, para que se avalie a conduta do homicida naquelas circunstâncias. E ninguém melhor do que seus pares, quer dizer, os homens e as mulheres do cotidiano.
Folha - A defesa da atriz e alguns advogados declararam nos últimos dias que os réus (Guilherme de Pádua e Paula Thomaz) estão sendo submetidos a um "linchamento público". O senhor concorda com isso?
Mariz de Oliveira - O "linchamento público" não teria nenhuma importância se esse clamor todo, representado pelas manifestações, não causasse riscos de influência nos jurados. O grande problema é esse. Há casos em que as pessoas são linchadas, execradas publicamente e depois são absolvidas pela Justiça.
Folha - O senhor é a favor da resguardo dos jurados em casos de grande repercussão?
Mariz de Oliveira - Esse é um problema dramático que coloca dois interesses relevantíssimos em jogo e se contrastando. Um é o interesse e o direito de a sociedade ser informada e da imprensa de informar. Outro é o direito de preservação do acusado para que haja garantia de julgamento justo. São dois interesses em jogo. Quem provoca, quem alimenta esse clamor público, via de regra, é a imprensa. Não quer dizer que ela (imprensa) o faz propositadamente. A simples notícia, o simples acompanhamento de um processo rumoroso serve para alimentar o clamor público e criar julgamentos prévios. Há de se achar um equilíbrio entre esses dois interesses.
Folha - O juiz, baseado estritamente na lei, não poderia tomar decisões mais precisas?
Mariz de Oliveira - O juiz não pode julgar, a não ser de acordo com a lei. No entanto, as teses defensivas, as teses excludentes de criminalidade são em número reduzido, exatamente porque a lei não tem como trazer para o seu bojo todas as situações de vida. Como o jurado não está obrigado a julgar de acordo com a lei, mas sim de acordo com a sua consciência, isso aumenta a possibilidade de se fazer Justiça.
Folha - Mas, nesse caso, não se abre espaço para que os jurados julguem mais pela emoção do que com base nas provas?
Mariz de Oliveira - Sim. Essa é uma questão tormentosa. Agora, isso não quer dizer que o juiz também não julgue desse forma. O juiz é um ser humano, ele pertence à sociedade, é influenciado como todos nós. As situações mais dramáticas, se fossem julgadas pelo juiz togado, o acusado estaria forçosamente condenado. No entanto, a sociedade, analisando e julgando, o absolve porque o homem comum se coloca na posição do acusado e constata que naquelas circunstâncias ele agiria da mesma maneira. Nós chegamos à conclusão de que não poderíamos exigir do acusado outra conduta.
Folha - Há outras formas de júri?
Há o escabinado, do sistema inglês. Nela, há um misto de juízes leigos e juízes togados, que formam o corpo de jurados. Eles discutem e votam com o mesmo peso. Nos EUA, as decisões têm de ser unânimes. Os jurados ficam horas discutindo para se chegar à unanimidade, o que não ocorre no Brasil, onde o voto é secreto e há a incomunicabilidade entre os jurados a respeito do caso e dos quesitos.
Folha - Por falar em quesitos, o senhor não acha que eles são muito técnicos e por isso podem confundir os jurados? Não seria o caso de o júri decidir apenas se o réu é inocente ou culpado e de os quesitos serem avaliados pelo juiz?
Mariz de Oliveira - Essa é a grande modificação que tem de ser aplicada no júri. É uma incoerência você defender um júri popular e apresentar a ele, que é constituído por leigos, quesitos técnicos. Quesitos, que muitas vezes levam à nulidade do júri ou a decisões injustas porque os jurados não os entenderam. Os jurados deveriam julgar pela condenação, absolvição ou por uma tese intermediária. Essa última, no caso de o jurado não querer a condenação do réu a 12 anos de cadeia, por exemplo, mas também não querer a sua absolvição.
Folha - Mas, para que houvesse essa tese intermediária, não deveria haver modificação na lei?
Mariz de Oliveira - Seria preciso modificar a lei. Embora o homicídio atinja o valor supremo que é a vida humana, na maioria das vezes, o homicida não é um criminoso habitual. Ele é um criminoso ocasional. Ele merece, por incrível que pareça, um tratamento mais adequado do que a prisão. Um tratamento em que ele não seja colocado na vala comum dos criminosos perigosos. Entraria a prestação de serviço à comunidade. A cadeia tem de ser reservada exclusivamente para aquelas pessoas que não podem conviver em sociedade. Todos os outros crimes, com exceção daqueles que denotam periculosidade muito grande (estupro, assalto), deveriam ter penas alternativas. Pôr na cadeia quem não pode viver na sociedade.

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