São Paulo, terça-feira, 3 de setembro de 1996
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Menino perdido pelas ruas pela tarde da noite

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Que não se saiba nem que nome um menino tem nos dias de hoje, e que ele atravesse no anonimato o país, de Guaratuba, no Paraná, para Manaus e ao contrário, parece absurdo.
O caso mal contado do suposto reaparecimento do menino Leandro Bossi -que pode ser Diogo Rodrigo Moreira-, desaparecido em 1992, aos 8 anos, em Guaratuba, é típico do desrespeito generalizado pela vulnerabilidade da infância, do ostracismo a que ainda hoje se relega esse período da vida no mundo todo.
Vivemos hoje a era da informática, mas o problema parece antigo, lembra os meninos do sertão, que eram (ou são) dados de porta em porta porque a família não tinha como alimentá-los. Meninos sem nome, são hoje homens feitos que não sabem de onde vieram.
O caso das meninas belgas, encontradas recentemente enterradas no quintal de um pedófilo maníaco, lembra qualquer quintal do mundo.
Foi pura sorte, talvez, minhas três irmãs e eu não termos tido destino idêntico. Em Recife, um vizinho inventou um dia de se exibir para nós, meninas entre 6 e 12 anos, no quintal dos fundos.
O homem se encostava ao tronco de uma mangueira e exibia o pênis ereto e grosso, que se confundia tosco com o próprio tronco da árvore. De início, reagimos com susto.
Depois, desenvolvemos uma mistura de curiosidade com repulsa e escárnio pela figura do enorme Risomar, ovelha negra da família vizinha, sempre desempregado, sujo e descalço. Ele nunca ousou chegar perto de nós, mas pediu para que não contássemos a ninguém.
Na época, eu já sabia que até mesmo a estupidez e a fraqueza alheias -especialmente da gente grande- deviam servir para me instruir. Decidi que devíamos chantagear Risomar. Ou ele nos dava balas e doces todo dia, ou nós contávamos.
A chantagem durou pouco. Um dia, irritada com cascudos e tapas que recebera de minha mãe por motivo que eu julgava fútil, me vinguei da gente grande. Denunciei Risomar.
Meu pai, por quem, por outros motivos, eu não tinha respeito algum, ameaçou matar o exibicionista. Mas não houve crime. Apenas vi esbravejarem diante de mim dois homens desprezíveis. Anos depois, Risomar morreu atropelado, atravessando a avenida que ia dar nos Tijolos, o puteiro local.
O título desse artigo, eu tirei do desenho de um sobrinho meu de 6 anos, feito quando a novela "Explode Coração", da Globo, divulgava cartazes do Movimento Nacional de Crianças Desaparecidas.
O desenho é bastante revelador do medo que o menino então nutria de se perder. Inspirada no desenho, escrevi para ele uma história chamada "A Tarde da Noite", baseada no caso real de Marissol, uma menina da minha infância que se perdeu da mãe, mas foi encontrada e levada para casa por um misterioso desconhecido.
Na história, a tarde avança pela noite e a noite tem tarde. Mas tudo termina bem, para que o menino dormisse bem e nutrisse algum respeito pelos desprezíveis homens maus e mulheres más que ele precisa enfrentar na vida real.

E-mailmfelinto@uol.com.br

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