São Paulo, terça-feira, 3 de setembro de 1996
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A ideologia da obra é a democracia

LUIZ PAULO CONDE

Analistas políticos e sociólogos de plantão têm declarado que, no pleito municipal, os eleitores estão substituindo adesão à ideologia por apego a obras. Identificam eles, assim, o que seria o esvaziamento político desta eleição em benefício de interesses menos nobres.
Em decorrência, exaltam a capacidade de transferir votos que alguns prefeitos têm demonstrado, mas a creditam à reforma tributária viabilizada pela Constituição de 88, que teria transferido recursos dos Estados e da União para os municípios.
Seria tudo óbvio. Com cofres cheios, seria fácil para as prefeituras encher os olhos do eleitorado, seduzindo-o para apostar na continuidade dos governos municipais.
Trata-se, a meu ver, de visão radicalmente distorcida, que ignora as mudanças por que passa o país há décadas, passa ao largo das mudanças no relacionamento entre Estado e cidadãos e, fundamentalmente, subestima os eleitores brasileiros. Não há vazio ideológico nessas eleições. Há, isso sim, o vigoroso surgimento de uma nova ideologia.
Para não ir muito longe. Entre nós, a democracia está instalada. Ela não mais se debate contra os resíduos do autoritarismo e das dicotomias que ele produziu. Isso o eleitor está rejeitando e vai banir -exatamente porque está imbuído de novas idéias, que o discurso demagógico não mais consegue perceber.
O eleitor está municipalizando o voto. E, nas próximas eleições, dará forte demonstração de que também sabe distinguir as atribuições de governadores e do presidente. A nova mentalidade está sendo apresentada nessas eleições, começará pelos executivos, mas, tenho convicção, vai se estender aos parlamentos.
Prefeitos cuidam de cidades. A gerência, continuada e eficaz, é sua principal atribuição. Gerência envolve sensibilidade social para reformas e para manutenção do que foi realizado. O valor básico é tornar nítida a alçada da prefeitura e atender no limite esse compromisso.
Acabou a época das demolições, do negativismo de atiradeira. Acabou a época do estelionato eleitoral que, apoiado na passada ingenuidade do eleitor, o usava como massa de manobra para a conquista do poder.
Do profundo ceticismo com as instituições e os homens públicos, está nascendo um novo cidadão, que extrai lucidez da experiência sofrida.
Ele é mais ferino, mais exigente, menos contemplativo. Vai varrer do mapa político aqueles que, numa disputa à prefeitura, prometem acabar com o desemprego, combatem o presidente da República -chamam isso de ideologia-, mas nunca, quando eles mesmos ou seus partidos dirigiram a administração municipal, cumpriram com um único compromisso de sua inequívoca competência. São falsários.
Quem não o cumpre é destituído de responsabilidade pública e social, desrespeita o cidadão e é atingido pela mais letal das armas do cidadão -o voto. É a punição da leviandade. Essa nova ideologia fortalece a eleição municipal como base da reconstrução de vínculos saudáveis entre os eleitores e a classe política de modo geral.
Essa nova ideologia permitirá que se cumpram todos os projetos de municipalização administrativa -como o SUS, por exemplo- que dependem de força política para consumar a boa intenção de trazer para o plano municipal as iniciativas básicas que o Estado deve aos cidadãos. É o eleitor que vai exigir que isso aconteça porque ele demonstra consciência de que isso é necessário e inadiável. É mais eficiente.
Nesse sentido, portanto, o que o pseudointelectualismo abomina como obra, para sugerir a despolitização suprema do eleitorado, é precisamente o oposto: a ideologia da obra é manifestação contemporânea do novo eleitor, que quer respeito, eficiência e qualidade na administração pública.
Vazio era o discurso descompromissado. Arrogante era taxar de ideologia a promessa do candidato.
Vivemos outra época, entramos em outra onda.
Prevalece e prevalecerá a manifestação do eleitor. Esse talvez seja o mais exemplar sinal de democracia que a sociedade brasileira está dando aos dirigentes políticos.
O cidadão quer que os homens públicos mereçam essa designação. Exige que o Estado funcione.

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