São Paulo, quarta-feira, 4 de setembro de 1996
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Poesia moderna nasce da morte das ilusões

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Tudo é mal. Isto é, tudo o que existe é mal; a existência de cada coisa é um mal; o propósito de cada coisa que existe é o mal; a existência é um mal e conduz-se para o mal; o propósito do universo é o mal... a existência... é uma monstruosidade."
O autor dessas palavras é Giacomo Leopardi (1798-1837), talvez o maior poeta italiano depois de Dante Alighieri.
A editora Nova Aguilar acaba de lançar um bonito livro, mais de mil páginas em papel-bíblia, contendo a "Poesia e Prosa" do escritor.
Grandes pessimistas como Schopenhauer e Nietzsche sempre gostaram de Leopardi, e o trecho de seu diário íntimo, citado acima, explica bem por quê.
O professor Angelo Zuccarelli, examinando os restos mortais de Leopardi, calculou que ele devia ter menos de 1,45 metro de altura.
Era corcunda, teve sérios problemas na vista, graves desilusões amorosas e passou a maior parte da vida encerrado no palácio de sua família, sob o férreo domínio de seu pai, o ultra-reacionário conde Monaldo Leopardi.
Sua época foi também propícia ao pessimismo. Toda literatura do início do século 19 esteve marcada pela melancolia, pela desilusão, por uma sensação de "envelhecimento do mundo".
A Revolução Francesa havia afogado suas promessas num abismo de sangue e de terror; a grandeza épica de Napoleão Bonaparte tivera um triste fim; o iluminismo, os ideais de progresso e de felicidade humana revelavam-se como puro pragmatismo burguês.
É de um tal sentimento -a morte das antigas ilusões- que nasce a poesia moderna.
Isto é, uma poesia que tem consciência de sua própria artificialidade, de seu próprio "fingimento"; que procura iludir, encantar, celebrar, sabendo contudo da impossibilidade de suas ambições.
Para que poetas em tempos sombrios?, perguntava-se Hoelderlin, num belo poema. Leia-se, a propósito, "Ironias da Modernidade", coletânea de ensaios de Arthur Nestrovski (editora Ática).
Não vem muito ao caso saber se Leopardi acreditava de fato em tanto pessimismo assim.
Ou se Chateaubriand, outro melancólico, acreditava de fato no catolicismo que ele quis restaurar como antídoto poético para os males de seu tempo.
O niilismo de Leopardi ou o catolicismo de Chateaubriand são respostas equivalentes, e "literárias", a uma mesma sensação, que é quase corporativa ou ideológica: a de que a literatura e a poesia não enganam (nem interessam) mais ninguém...
Parece um pouco estranho dizer que Leopardi é um dos criadores da poesia moderna.
Ele passa por ser o poeta mais "antiquado" que existe: daqueles que perguntam à Lua o que ela está fazendo, tão distante, no céu.
Mas essa nossa imagem "antiquada" do poeta apostrofando a Lua e as estrelas é também uma ilusão de ótica temporal.
Os poetas verdadeiramente não modernos, do século 18 para trás, invocavam as musas e os deuses do Olimpo; faziam referências a entidades e tradições que hoje ignoramos totalmente.
Esse confronto despojado, nu, solitário com a natureza, que é moderno, foi inaugurado pelos poetas do século 19, como Leopardi, por mais que esse gênero de poesia pareça algo antiquado agora.
O fascínio dos poemas de Leopardi não se deve, entretanto, a essa "modernidade" historiográfica.
O importante é que ele continua moderno mesmo para quem o lê hoje em dia.
Tudo o que a nossos olhos parece "antigo", esse falar de Lua e estrelas, surge vazado numa linguagem estranhamente seca, densa, sem concessões.
A beleza de alguns poemas de Leopardi, "O Infinito" ou "A Si Mesmo" por exemplo, tem algo de inesgotável e altivo, como se um belo rosto que só se apresentasse de perfil.
São raros os versos cantantes, eufônicos, as rimas de efeito, as imagens coloridas. Não há muita descrição; o pitoresco só é visto de longe.
Poesia é algo que tem de ser vago, diz Leopardi.
"Vagas estrelas da Ursa..."; "O vento trazendo o som das horas/ desde a torre do burgo"; "A donzelinha" que traz um feixe de ervas ao voltar do campo; a moça que canta ao longe; a colina erma e cara, a Lua, tudo tem de se mostrar longínquo.
E mesmo a musicalidade de seus poemas é feita mais de ressonâncias remotas do que de melodia verbal.
Às vezes, um verso se destaca: "Degli occhi suoi, ridenti e fuggitivi" ("A Silvia"). Para ecoar, 40 versos mais tarde, em "degli sguardi innamorati e schivi". Como se a própria sonoridade de um poema se organizasse segundo a lógica da memória, do passado, e não do presente.
Apesar de todo o seu pessimismo, ou talvez por isso mesmo, o tema de Leopardi é sempre o de uma idade, a adolescência, em que as ilusões ainda existem.
Morrer nessa idade, eis o fato poético, o fato lamentável por excelência.
Muitos poemas celebram, assim, não o passado, mas uma espécie de futuro inexistente -um futuro que, há anos, alguém projetava como real, mas desapareceu com a morte, antes de que o presente o destruísse.
Os poemas de Leopardi, no auge do desespero, mantêm uma distância e uma sobriedade muito grandes; um classicismo.
Recusam-se a ser sempre melodiosos, ou pelo menos são muito eruditos e sutis na musicalidade. São como que uma "fala secreta", uma ciência grave e recolhida.
Absorvem-nos como a noite e exercem uma espécie de atração obscura, apesar de seu sentido literal ser dos mais acessíveis.
Como um "Sol negro da melancolia", para lembrar outro poeta, Nerval, cada poema de Leopardi é um centro de gravidade no qual o leitor se perde sem saber direito como.
Não há imagens surpreendentes, harmonias verbais, metáforas brilhantes. Há poesia. Algo que, na convicção do próprio poeta, desapareceu do mundo.
É esse desaparecimento o que se canta. Um dos mais poderosos poetas da modernidade faz assim poesia da sua própria impotência. Mas talvez isso é que signifique ser moderno. E ser poeta.
Tenho infelizmente de dizer que este belo volume da Nova Aguilar, estas mil páginas de Leopardi, constitui um verdadeiro desastre em termos de tradução.
Faltam versos em poemas importantes; passagens inteiras ficam incompreensíveis; Albert Duerer vira "Alberto Duro", as Termópilas são "Termópolis". E seria longo mostrar todos os crimes cometidos.
O livro serve como ajuda, com o original italiano ao lado; e vale, também, como um objeto essencialmente leopardiano -uma promessa de bem-aventurança negada ao leitor, uma expectativa, tão bonita na encadernação azul e no papel-bíblia, desfeita cruelmente pelo destino adverso.

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