São Paulo, sexta-feira, 6 de setembro de 1996
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Orquestra da França oferece momentos da grande música de Prokofiev

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Toda tragédia tem um lado irônico, ensina Northrop Frye, porque a platéia geralmente sabe mais sobre o que está acontecendo, ou vai acontecer, que as próprias personagens.
"Romeu e Julieta" é a tragédia por excelência, e Sergei Prokofiev (1891-1953), um mestre da ironia, mas dificilmente a platéia deixa de se surpreender com as narrativas e as harmonias de sua grande suíte sinfônica shakespeariana.
O mais cosmopolita dos compositores russos modernos, Prokofiev permanece inconfundível e inexplicável. Cada vez mais um músico do nosso tempo, escondido e revelado nas formas da tradição, capaz de grandes gestos e pequenas minúcias, elegante mas desbragadamente apaixonado pelo corpo dos sons, Prokofiev fez a Orquestra Nacional da França tocar alguns momentos de grande música, em seu concerto de terça-feira, no Cultura Artística.
Acordes dissonantes em movimento paralelo, ritmos sincopados distribuídos pela orquestra, sucessões velozes de ataques em "staccato", veladuras nas cordas, grandes castelos de notas sobrepostas: como era lindo o modernismo! E que felicidade quando essa Orquestra, sob a regência de Charles Dutoit, parece entender, de dentro, a música que está tocando.
Nem sempre foi este o caso, infelizmente. A "Sagração da Primavera", tão pouco tocada por aqui, tinha tudo para ser o ponto alto da noite, mas acabou sendo uma decepção.
Dutoit é um regente sempre claríssimo e fluente; mas sua "Sagração" fez de Stravinski (1882-1971) um contemporâneo um pouco estridente de Smetana (1824-1884), autor do bis, que acabou sendo a peça mais bem tocada do concerto.
Foi uma "Sagração" corrida, mas meio sem pulso e com os metais e sopros surpreendentemente ruins. Essa música, hoje tão fácil, precisava, quem sabe, permanecer difícil, para que os músicos chegassem de novo ao limite da tensão, para não dizer atenção.
Pode soar esnobe criticar assim uma orquestra deste porte. Mas, com a programação da cidade nesses últimos anos, já temos o direito de criticar quem quer que seja.
O valor relativo das coisas ficou mais claro. Estou com a platéia, aliás, que educadamente exigiu um bis e se contentou com um só.
Melhor do que o Stravinski foi o "Concerto em sol" de Ravel (1875-1937), com o solista Pascal Rogé. Conhecido por suas gravações de Poulene, Rogé tocou um Ravel sem uma nota fora do lugar, mas desconfortável de tão cuidadoso.
Esse concerto, tão exuberante nas pontas, tão cheio de nostalgia no meio, soou lindo na orquestra, mas sem muito caráter no piano.
Rogé tocou um pouco como quem fala com estrangeiros: articulado demais, mastigado demais, fora do ritmo natural da língua.
Tudo somado, fica ainda um saldo positivo. Um belo programa, arrojado para os padrões habituais. Uma boa orquestra, mesmo sem ser, nem de longe, uma das melhores da atualidade. E alguns momentos de grande música, que poderiam ter sido mais.

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