São Paulo, sexta-feira, 6 de setembro de 1996
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O destino não bate à porta: vai logo entrando

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Era uma vez um Rei que amava o ouro, o poder e a glória. Um dia, passou pelo reino um vidente extraordinário que sabia o passado e adivinhava o futuro.
Contavam maravilhas desse mago, que, por sinal, além de mago era magro: só se alimentava de mel e gafanhotos, regime mais eficiente do que o scarsdale e a dieta dos astronautas.
Sabendo de suas virtudes e capacidades, o Rei mandou-o chamar e intimou-o a que lhe abrisse o futuro: desejava saber onde e quando morreria.
O adivinho ergueu os braços para o céu, fechou os olhos para melhor concentração e disse poucas e más palavras: "Daqui a quatro anos, majestade, sentado no trono, morrerás!"
O Rei achou que era pouco tempo para gozar todo o ouro e glória que acumulara desde que assassinara o pai e envenenara os irmãos: sem saber, era um neoliberal e agia em busca de resultados.
E buscando resultados, na impossibilidade de reformar o destino, decidiu ampliar seu mandato na face da Terra e em cima do trono: ordenou que em seu reino nunca houvesse noite, a corte deveria estar sempre em festa.
Imensas luminárias foram instaladas no real palácio e na floresta vizinha onde o Rei caçava javalis.
Convocados pelo soberano, os feiticeiros do reino distribuíram uma poção miraculosa dos Sete Sais da Vida (SSV, para os entendidos) e ninguém mais dormiu.
Abolindo a noite e o sono, ele dobraria o destino. Em vez de quatro, teria oito anos de vida a mais.
Também evitou sentar no trono. Mas o Grande Chanceler o dissuadiu de tão drástica decisão. Se o Rei tinha a garantia de quatro anos de vida, nada de terrível poderia lhe acontecer até que se cumprisse o prazo fatal.
O Rei aceitou o conselho e continuou aproveitando com avidez cada minuto de sua vida: nunca se ouviu dizer, em léguas e léguas da face da Terra, que outro Rei amasse com tamanha fúria o ouro, o poder e a glória.
E que nenhum outro se entregasse com tal depravação às orgias que não tinham começo nem fim, pois não mais havia noites e dias.
Deu-se que, dois anos depois, cansado de copular ao mesmo tempo com um pajem, uma dama da corte e uma cabra, o Rei sentou-se no trono para descansar.
Súbito, súditos e nobres viram o Rei ficar roxo, levar as mãos à real garganta, esbugalhar os olhos e morrer.
Lembraram-se todos de que faziam exatos dois anos da passagem do adivinho pelo reino.
Ao tentar prorrogar seu mandato na face da Terra e em cima do trono, o soberano abolira a noite, mas não abolira o tempo.
Exatos dois anos depois, ele cumprira os quatro que lhe estavam destinados e morreu como previsto.
Com seu passo breve, a Morte é como Minas Gerais: está onde sempre esteve.
*
No mercado de Bagdá, empoeirado e cheirando a suor de camelo, o fiel Abdula ia em busca de tâmaras para comer.
Ao chegar a uma barraca famosa pelo frutos do deserto que vendia, viu a Morte comprando exatamente as tâmaras que ele buscava.
Apavorado, Abdula desistiu das tâmaras e fugiu, tão afobadamente que nem reparou no espanto que causara à Morte.
Tal e tamanho espanto fora tal e tamanho que a Morte também desistiu das tâmaras -o que lhe valeu impropérios do vendedor de tâmaras que a chamou de cadela infiel e comedora de carne de porco, as duas piores ofensas que ele conhecia, reservadas àqueles que lhe despertavam as piores cóleras.
Para falar a verdade, a Morte pouco ligou às ofensas recebidas. Foi para um canto. Quem a observasse verificaria que ela ficara pasma de ver Abdula ali no mercado de Bagdá.
Quanto a Abdula, mesmo que alguém quisesse, ninguém poderia vê-lo.
Montado em seu camelo mais veloz, ele disparou pelos empoeirados caminhos, atravessou desertos e vales, reinos e oceanos numa velocidade espantosa, tão espantosa quanto a travessia de oceanos em cima de um camelo, fosse que camelo fosse.
No fim da tarde, estava justo no outro lado do mundo. Basta dizer que em Bagdá já era meia-noite e ele descansava, exausto, num oásis inundado de Sol, pois ali era meio-dia.
Apesar da fadiga, Abdula estava tranquilo: conseguira fugir da Morte, que àquela hora deveria estar cumprindo sua macabra missão em cima de outros Abdulas que compravam tâmaras no mercado.
Eis que, das dunas do deserto, surgiu o negro vulto de um forasteiro. Abdula pensou: "Deve ser um beduíno que vem buscar água e sombra nesse oásis".
Ficou alegre. Ao cair do sol ele teria um companheiro na prece vespertina.
Quando o negro vulto se aproximou, Abdula viu que não era um beduíno em busca de água e sombra. Era a Morte em busca dele.
Abdula teve mais espanto do que medo: "Mas como? De manhã você não estava no mercado de Bagdá?"
A Morte não mais tinha espanto. Resignada, ela admitiu: "Sim, eu estava lá. Tinha de vir buscá-lo aqui, antes que o Sol caísse. Achei absurdo, mas tudo deu certo".
E tanto deu certo que levou Abdula para a terra da Sombra, onde o Sol não precisa cair para haver treva.

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