São Paulo, sexta-feira, 6 de setembro de 1996
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'Tieta do Agreste' é o último filme dos anos 70

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

"Tieta" é um marco no cinema brasileiro. Não por ser o filme inaugural e prospectivo que o messianismo de críticos e cinéfilos aguarda impacientemente para poder afirmar "agora sim, temos uma grande obra, um trabalho redentor, um novo caminho".
Mas sim por fechar, com mais de uma década de atraso, um ciclo cinematográfico que se poderia chamar de pós-cinemanovista. Ou seja, aquele conjunto de obras surgido depois de "Macunaíma", de Joaquim Pedro de Andrade, que pretendeu unir alguns princípios ideológicos e formais do movimento ao sucesso de mercado.
Sob o risco da diluição e do oportunismo estético, e sob a sombra da Embrafilme, partiu-se naquele período para uma tarefa perigosa, mas estrategicamente importante.
Tratava-se de reconciliar o público com uma produção nacional de "nível": não vamos voltar a deflorar ninguém na serra, a fazer chanchada ou aderir ao pornô.
Mas também não vamos ficar prisioneiros do experimentalismo e do intelectualismo da fase heróica do cinema novo.
Qual, então, o parâmetro contemporâneo para ser popular, ser nacional e ter "nível"?
A resposta foi encontrada na literatura e na dramaturgia: Jorge Amado e Nelson Rodrigues, dois grandes artesãos, que tipificaram, cada um a sua maneira, "o brasileiro".
Dois autores, também, que -a despeito de controvérsias acadêmicas e ideológicas- já haviam passado pelo teste do gosto médio.
"Dona Flor", "Tenda dos Milagres", "Gabriela", "Toda Nudez", "O Casamento", "A Dama do Lotação", "Os Sete Gatinhos"... Os títulos falam por si -e a eles juntaram-se parentes, como "Xica da Silva".
Não por acaso, essa onda nacional-popular teve correlatos televisivos, seja em adaptações de Jorge e Nelson ou em originais de Dias Gomes e cepecistas históricos.
É essa safra, que encontrou na iluminada Sonia Braga sua maior atriz, que o filme de Cacá Diegues encerra, por uma série de motivos, tardiamente. É o último filme da década de 70.
"Tieta" é, nesse sentido, o limite máximo de um modelo que se esgotou, como esgotou-se e envelheceu o Brasil em que ele foi moldado. O que o filme nos diz é que podemos, sim, fazer cinema, mas não poderemos ter mais adaptações de Jorge Amado com Sonia Braga de sexy-symbol.
O Brasil de hoje, pós-ditadura e pós-impeachment, o Brasil do morro controlado pelo narcotráfico e da violência no asfalto, o Brasil do computador, da TV a cabo e da globalização, do Olodum no Central Park e da lei antifumo em São Paulo, pede novos espelhos.
Cacá Diegues bem que tenta atualizar e fazer referências, mas a imagem que reflete, muitas vezes de uma beleza arrebatadora, é a de um retrovisor.
Como os filmes do ambiente a que pertence, "Tieta" é irregular. Há um atropelo de pequenas cenas, sem maior função, que dá, especialmente à primeira metade do filme, um jeito de colcha descosturada. É um lugar-comum, mas poderia ser mais enxuto.
Há, também, uma certa pieguice (dieguice?) nacionalista que surge como "sacada", mas é ornamental e constrangedora. Do tipo: Tieta pega uma câmera de vídeo, vai em direção ao espelho e focaliza uma bandeirinha brasileira que está ali pregada...
Ou um personagem que, em meio à discussão sobre a instalação da indústria poluente, sai-se com uma frase cujo artificialismo ao ser pronunciada é proporcional à aparência de pertinência ideológica que procura vender (cito de memória): "Não estamos discutindo apenas o que queremos fazer do Agreste, mas o que queremos fazer do Brasil"...
Outras chatices: o merchandising malfeito do banco Real, os modelos, com poucas exceções, horrendos de Ocimar Versolato, os cacoetes italianizados de filmar.
Mas há méritos evidentes em "Tieta", que ameaça perder o fio, mas se recupera numa segunda metade ascendente dramatica e cinematograficamente, prendendo e divertindo o espectador. Uma Sonia com ótimos momentos e uma Marília Pêra dando aula. E a música, que é belíssima.

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