São Paulo, sexta-feira, 6 de setembro de 1996
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Mal-estar na civilização

Um chefe de família de Milão desce em Fortaleza ou Natal em busca de sol, areia e uma garotinha
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
Na minha infância, já pairava o fantasma do abuso sexual contra meninas, e nos assombravam com conselhos de jamais aceitar balas de estranhos na rua. Éramos alertadas contra "esses homens", e muitas dentre nós encontraram o famoso personagem com capa de chuva, um miserável que se exibia nas praças e esquinas escuras. Era "o tarado". Quando acontecia, provocava um terrível mal-estar em casa, uma grande angústia nos pais e perturbação nas crianças.
Hoje multiplicam-se os tarados mundo à fora. Duas meninas mortas de fome em um subsolo na Bélgica, raptadas para servir a uma rede de exploração sexual de crianças, são a metáfora eloquente de um mal-estar na civilização.
O fato aconteceu dias antes da instalação de um congresso mundial sobre a exploração sexual de menores, em Estocolmo. Um congresso mundial serve para mostrar que o problema da pedofilia é mais que a perversão sexual de alguns indivíduos que a uns inspiram horror, a outros, pena.
É um negócio lucrativo, crime organizado em escala mundial com redes que sequestram, violam, vendem, matam. O que há de mais sórdido, um baixo mundo repugnante. Está aí, existe e prospera, desafiando fronteiras, inclusive a nossa. E prospera porque há demanda, porque há mercado consumidor, como no caso da droga.
Passaram-se anos até que o tráfico de drogas encontrasse uma real repressão. Quando esta começou, já era tarde. O tráfico se transformara em um dos mais lucrativos negócios do mundo, capaz de defender-se com armas poderosas, no sentido figurado e explícito.
Nas últimas semanas, foi-se desenhando na consciência mundial a noção de que a prostituição de crianças e jovens possa vir a tornar-se, ou já se esteja tornando, um problema do porte do narcotráfico. Com uma diferença fundamental. Quem consome drogas age por sua própria conta e risco; quem "consome" uma criança pratica um ato monstruoso sobre um outro ser indefeso, ato que nenhum pai ou mãe perdoaria e que a sociedade não deve e não pode perdoar.
Não é de hoje que meninas são vendidas e compradas. Jorge Amado contou em prosa, o cancioneiro popular, em verso. Histórias da miséria no Brasil profundo e sem lei, onde o coronelato desafogava seu sadismo social e sexual.
Quem nos oferecia bombons era tarado, o coronel que comprava meninas era um respeitável dono da terra, cioso da pureza de suas filhas. Esse modelo se reproduz hoje a nível mundial sob o nome cínico de turismo sexual. Um bom chefe de família toma um avião em Milão e desce em Fortaleza ou Natal em busca de sol, areia, "buggies" e uma garotinha colhida na rua. Pagam bem, criam uma expectativa de lucro, indicam um descaminho.
Não são milhões de meninas que se prostituem no Brasil. Como não são milhões as crianças de rua. As cifras demenciais são perigosas porque têm um poder paralisante. O problema existe e não há que exagerá-lo. Um só caso já bastaria para exigir resposta.
Não vivemos mais o tempo sem lei do Brasil feudal. Mas, se não há que exagerar na quantidade, não há tampouco que minimizar a gravidade do problema. O turismo sexual, a prostituição de meninas e jovens destruíram em poucos anos uma civilização milenar como a que existia na Tailândia. O tráfico de drogas fez da Colômbia uma terra em transe.
Há que desmantelar redes, prender aliciadores, rufiões e usuários (no feminino, quando for o caso). Agora, já, como prioridade da comunidade internacional. E colocar a mais embaraçosa e difícil das questões: não será o tráfico de crianças a última volta de parafuso de uma lógica em que tudo está à venda, e tudo tem seu preço?
Neste caso, restaria uma responsabilidade a assumir, não apenas pelos Estados com seu poder e dever repressivo, mas pela sociedade como um todo face a este mal-estar na civilização. Devemos perguntar-nos por onde andam nossos valores, que tipo de mundo é este, sem limites nem ética, em que o tarado de nossa infância se transforma em consumidor de massa, cliente de um mercado perverso a quem o crime organizado serve com a brutalidade e impunidade das máfias sem fronteiras.

Rosiska Darcy de Oliveira, 52, é presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e professora de literatura do curso de pós-graduação da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).

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