São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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Uma carta sobre 'Godot'

SAMUEL BECKETT

Paris, 1952
Para Michel Polac
Você quer saber minhas idéias sobre "Esperando Godot", cujos excertos você me dá a honra de transmitir no seu Club d'Essai, e ao mesmo tempo minhas idéias sobre teatro.
Eu não tenho idéias sobre teatro. Não conheço nada. Não vou. É admissível.
Bem menos é, antes, nessas condições, escrever uma peça e, então, tendo feito isso, nem sequer ter idéias sobre ela.
É, infelizmente, o meu caso.
Não foi dado a todos o poder de passar do mundo que se abre à página de proveitos e perdas, e retornar, imperturbável, como alguém que vai da labuta ao Café du Commerce.
Eu não sei mais sobre essa peça do que alguém que consiga lê-la com atenção.
Eu não sei com que espírito a escrevi.
Eu não sei mais sobre os personagens do que o que eles dizem, fazem e lhes acontece. Do aspecto deles devo ter indicado o pouco que pude entrever. Os chapéus-coco por exemplo.
Eu não sei quem é Godot. Nem mesmo sei se ele existe. E não sei se eles acreditam nisso ou não, os dois que o esperam.
Os outros dois que passam ao final de cada um dos dois atos, deve ser para quebrar a monotonia.
Tudo o que consegui saber, eu mostrei. Não é muito. Mas me basta, é o suficiente. Diria até que estaria satisfeito com menos.
Quanto a querer encontrar em tudo isso um sentido maior e mais elevado para levar consigo depois do espetáculo, junto com o programa e as guloseimas, não vejo nenhum interesse nisso. Mas talvez seja possível.
Eu não estou mais lá, nem estarei jamais. Estragon, Vladimir, Pozzo, Lucky, o seu tempo e o seu espaço, eu não pude conhecê-los um pouco senão afastando-me bem da necessidade de compreender. Eles talvez devam prestar contas a você. Que eles se virem. Sem mim. Eles e eu estamos quites.

Tradução do francês de Leonardo Babo

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