São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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Oráculos de existência efêmera

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Primeiro, um breve registro pessoal. Quando fui enviado a Nova York pelo jornal, quase dez anos atrás, a instrução formal, em edital, foi "aprender com Paulo Francis sem imitar seu estilo".
A instrução, carregada de ironia, nem era necessária: eu já aprendia com Francis, já tinha Francis por professor havia muito tempo, como toda a minha geração; e ninguém escreve como ele.
Francis foi a referência maior de quem começou a ler jornal antes da democratização -mas já sem a vivência dos anos 60.
Aquele Paulo Francis, com aquele estilo desabusado, impertinente, está agora de volta em "Waaal - O Dicionário da Corte de Paulo Francis", reunido pelo jornalista Daniel Piza.
É frustrante rever o "Diário da Corte" em livro. Ainda estão presentes a impertinência, o brilho agressivo e controverso, mas o que soava como oráculos agora empalidece como jornal velho.
Persiste o ruído da desinformação -como na música contemporânea, para citar exemplo que escapou da edição, música que é dada por inteiramente dodecafônica, ignorando os pós-minimalistas, os neo-românticos.
Agora, porém, não se trata mais do simples ruído de uma edição de jornal (por indesculpável que este também seja, aliás).
O que passa por ruído diário, que se esquece um, dois dias depois, são também os superlativos, os exageros opinativos do jornalista. Superlativos que, editados agora em sequência, em livro, incomodam mais e desqualificam a própria opinião.
Abrindo uma página a esmo, lê-se que John Gielgud foi "o maior elocucionista de Shakespeare", "a minha geração de jornalistas foi uma das mais brilhantes", André Gide é "um dos escritores mais verdadeiros" e "nenhum dos filmes de Judy Garland é memorável".
Outra página e Marlon Brando "foi um dos homens mais bonitos do século", um quarteto de Pierre Boulez "parece sintetizar a história da música" e as crônicas de Rubem Braga "não têm equivalente, a não ser muito raramente, na literatura chamada séria do Brasil"
Muito pior, certamente, é o que o livro deixa de fora -e é o que faz, o que define o Paulo Francis de hoje, mais do que tudo.
Sobre Vicentinho, por exemplo. "Uma das falhas do governo Fernando Henrique é sua boa educação", escreveu Francis. "É preciso meter as mãos na cabeça rapada de Vicentinho língua-presa (eu lhe daria uma chicotada para ver se reage docilmente como escravo)."
O racismo não escapou da edição.
Chamado de "dicionário", certamente para alcançar o nicho editorial das compilações de frases, de grandes vendagens, "Waaal" está longe de entregar o prometido. Francis não é autor de grandes frases, de "one-liners".
Alonga-se sobre os temas -e por mais que se busque, nada há que aproxime o jornalista da concisão demolidora de, por exemplo, Nelson Rodrigues ("se os fatos são contra mim, pior para os fatos", para dar um belo exemplo rodriguiano que também é útil, no caso).
Um verbete do "dicionário", sobre Dercy Gonçalves, mostra o quanto o jornalista muda de idéia a todo momento, outra de suas características. No caso, uma mudança de opinião histórica.
Dercy, junto com Procópio Ferreira, Jaime Costa, a recém-falecida Dulcina, foi alvo da geração de críticos de teatro de que ele fez parte.
Acreditavam então estar criando o teatro brasileiro, até então feito por comediantes populares, resistentes ao suposto novo teatro preconizado pela nova crítica.
(Nem novo teatro, nem nova crítica. Francis e colegas, nos fim dos anos 50, estavam a repetir o que Décio de Almeida Prado vinha escrevendo por dez anos em São Paulo, e que Álvaro Lins havia escrito nos anos 40, no Rio.)
Lutaram todos brava e cruelmente contra os "velhos", como Francis os chama, em "O Afeto que se Encerra, Memórias" (Ed. Civilização Brasileira, 1980). Agora Francis tem outra opinião e se desculpa; Décio de Almeida Prado também, por sinal.
"Dercy, Oscarito, Alda Garrido, Procópio etc. foram glórias", escreve o jornalista em "Waaal", "mas os críticos malharam tanto -eu incluso, 'mea culpa'- que a tradição se estiolou. Dercy é um momento vivo dos tempos áureos. Um Fellini teria feito dela estrela mundial."
O Francis crítico de teatro pode ser conhecido em maior detalhe em "Paulo Francis, o Soldado Fanfarrão" (Objetiva), de George Moura, dissertação também publicada agora em livro.
Pouco crítica, apesar do título, a dissertação tem a qualidade de adiantar, enquanto não publicam uma seleção, o que Francis escreveu, entre 1957 e 1963, como crítico do "Diário Carioca".
O melhor e o pior; pois Francis, fascinante, violento, não começou a exceder-se recentemente, como podem pensar, com o episódio de racismo e outros.
À parte o brilho agressivo de sempre, o livro apresenta um profissional que, como ele mostra em suas memórias, passou dos limites e precisou deixar a crítica de teatro.
O texto em questão merece ser transcrito, já que é muito comentado, mas desconhecido -o que permite que a crítica ainda seja descrita impunemente, pelo próprio, como "tecnicamente perfeita", ou "muito boa do ponto de vista técnico", o que está longe da realidade.
Refere-se a uma atriz que teria duvidado da masculinidade do crítico (o que se provou, posteriormente, um mal-entendido) e que foi presenteada com ataques como os seguintes:
"Nunca dormimos juntos, a que eu me lembre, para que ela possa manifestar-se sobre a minha virilidade... o que sei sobre sua vida privada caberia num romance... já me foram oferecidas cópias das fotos para que ela posou em trajes menores e posições provocantes, fotos que foram publicadas numa revista pornográfica americana... e quanto à maneira como ascendeu ao estrelato do TBC, os fatos já são do domínio público...".
Como se vê, "tecnicamente perfeita" é, para dizer o menos, uma auto-indulgência. Mas todos correm a relevar, a começar de George Moura, bastando um rápido "mea culpa".
Uma explicação possível é que Francis, ao sabor das correntes, é antes uma personagem do que uma presença real. A fascinação de uma geração inteira pelo professor de uma, duas décadas atrás foi, na verdade, pela personagem.
Personagem que, registre-se, chegou à ficção. Em episódio que "O Soldado Fanfarrão" relata superficialmente, sempre minimizando a polêmica, como também acontece com "Waaal", o crítico foi transformado em personagem por Nelson Rodrigues.
Em "Viúva, porém Honesta", que escreveu depois de "Perdoa-me por me Traíres", muito atacada pelo crítico Francis, o dramaturgo põe em cena Dorothy Dalton, "o crítico da nova geração", que morre atropelado por um carrinho de sorvete.
A comédia está em cartaz em São Paulo, e é uma homenagem maior e mais esclarecedora de Paulo Francis, em todas as imperfeições e em todo o revoltante fascínio, do que os livros agora editados.

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