São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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Os poemas obscenos de T.S. Eliot

VANESSA THORPE
DO "THE INDEPENDENT"

Uma nova coletânea de poemas inéditos do poeta americano naturalizado inglês T.S. Eliot (1888-1965), escritos em sua juventude, muito antes de ganhar o prêmio Nobel (em 1948), contém trechos de versos burlescos pornográficos.
Trocadilhos de teor escatológico e piadas grosseiras sobre genitália pontilham uma série de "limericks" (1) e fragmentos que o editor, Christopher Ricks, incluiu num apêndice, com a autorização da segunda mulher do poeta, Valerie, no livro "Inventions of the March Hare" (Invenções da Lebre Orelhuda).
Em 1922, dez anos depois de escrever esses versos toscos, Eliot os arrancou de um caderno de outras obras escritas quando tinha 20 e poucos anos e vendeu o caderno a seu benfeitor, o advogado nova-iorquino John Quinn, por US$ 140. Na mesma ocasião, deu a Quinn de presente o manuscrito de "The Waste Land".
Eliot entregou as páginas avulsas a seu grande amigo, o poeta Ezra Pound, admirador confesso de seus versos lascivos.
Ao que parece, Eliot considerava "impublicável" o conteúdo inteiro daquele caderno, mesmo os poemas mais sérios.
"Você vai encontrar grande número de estrofes que nunca foram publicadas e que, estou certo que você concordará comigo, jamais devem ser impressas. Ao colocá-las em suas mãos, eu lhe peço encarecidamente que as guarde para você mesmo e cuide para que nunca venham a ser publicadas", escreveu a Quinn.
Agora a viúva do poeta e seus editores e ex-empregadores, a Faber and Faber, adotaram uma postura diferente -e não há dúvida de que os poemas mais moderados constantes da coleção justificam a decisão de publicá-la. Vários deles lançam luz sobre os processos criativos subjacentes aos trabalhos mais conhecidos de Eliot.
Todas suas características poéticas já estão presentes ali, mesmo que apenas esboçadas: as perguntas enigmáticas, os detalhes sórdidos da vida urbana, o uso de observações ouvidas por acaso da boca de outras pessoas.
Enquanto preparam o lançamento do livro, que vai acontecer amanhã, a Faber and Faber e o editor, Christopher Ricks, se mostram dispostos a defender os conteúdos mais escabrosos da coletânea contra os críticos que porventura tenham razões literárias ou políticas próprias para se opor a sua divulgação.
"Trata-se de um livro maravilhoso, e passamos anos preparando sua publicação", disse John Bodley, diretor editorial da Faber and Faber. "Estamos preparados para defender sua qualidade."
Ricks, a quem Valerie Eliot, sete anos atrás, pediu que editasse o caderno, afirmou: "Será lamentável ao extremo se a poesia tiver tanto medo de ser criticada que optar por deixar de fora todas as energias fortes e desagradáveis que fazem parte da vida".
Mesmo os estudiosos de Eliot que se sentem repelidos pela obscenidade indisfarçada de alguns dos versos saudaram o fato de que o livro fará com que materiais antes disponíveis apenas a pedido se tornem acessíveis a todos.
Lyndall Gordon, que até 1995 dava aulas sobre T.S. Eliot em Oxford e cujo livro "Eliot's Early Years" saiu em 1977, acredita que o novo livro vai realçar os aspectos desagradáveis da psique do poeta.
Ela afirma que os versos pornográficos sublinham a misoginia subjacente a boa parte dos escritos de Eliot, defeito que caiu em relativo esquecimento nos últimos anos, à medida que os críticos destacaram principalmente o suposto anti-semitismo do poeta.
"Os 'limericks' são realmente asquerosos, mas todos os grandes escritores têm falhas de caráter, com a possível exceção de George Elliot", disse Gordon. "Eu diria que em lugar de prestar atenção às falhas, deveríamos estudar de onde vem sua grandeza."
"Eu sempre me debruçava sobre os melhores poemas de sua fase inicial", continuou, "e venho emprestando minhas transcrições aos alunos há anos. A possibilidade de lê-los tem valor enorme. Eles mostram que não houve, em sua vida, nenhuma transição repentina do ateísmo à religiosidade."
O advogado Anthony Julius, autor de um livro sobre o anti-semitismo presente na obra de Eliot, diz que os versos grosseiros têm sua origem em idéias pueris e racistas sobre superioridade sexual.
"É o tipo de coisa que um adolescente criativo faria para divertir seus amigos", disse. "Certamente não nos faz ter Eliot em melhor conta, mas suponho que pode dificultar um pouco mais a posição das pessoas que adotam a atitude errada, reverencial, em relação a ele."
O próprio Eliot declarou uma vez que os versos do Rei Bolo não passavam de uma tentativa de zombar do tom pomposo adotado pelos primeiros antropólogos.
O escritor Wyndham Lewis, seu amigo à época, não acreditou. Em uma carta que escreveu a Ezra Pound, Lewis disse: "Eliot me enviou 'Bullshit' e 'The Ballad for Big Louise'. São exemplos excelentes de lascívia acadêmica. Não vejo a hora de publicá-los em 'Blast', mas continuo decidido a não publicar 'palavras terminando em -uck, -unt e -ugger' ".
Christopher Ricks rejeita qualquer sugestão de que tenha tido que coagir Valerie Eliot a concordar com a publicação dos "limericks" grosseiros. "É claro que tivemos que discutir o assunto com ela", explicou.
"É uma questão delicada. Sabemos que haveria vantagens e desvantagens. Não era questão de pressioná-la para fazer o que eu queria. Havia trechos de poemas sérios no verso das páginas, e, se tivéssemos usado alguns dos versos excluídos por Eliot e não outros, isso teria sido censura", disse.
"Alguns dos poemas no livro são belíssimos, e a misoginia de Eliot não pode ser deduzida dos versos obscenos, porque ele se mostrava igualmente crítico em relação a todos os seres humanos, incluindo ele mesmo e o tipo de pessoa semelhante a ele."
Numa entrevista concedida em 1994, Valerie defendeu seu marido contra a acusação de crueldade para com sua primeira mulher, Vivien. Ela temia que o público assistisse ao filme "Tom and Viv", baseado na peça do mesmo nome de Michael Hastings, e fizesse mau julgamento de Eliot.
"As pessoas vão conhecê-lo apenas como autor de 'Cats', depois assistirão ao filme e pensarão que ele era um monstro de devassidão, como Macavity the Cat."
Tendo autorizado a publicação da nova coletânea, Valerie talvez tenha que confrontar-se com críticos que agora acusam Eliot de um tipo diferente, talvez um pouco triste, de depravação.

NOTA
1."Limerick" é um poema de cinco versos, cômico e muitas vezes bestialógico.
Tradução de Clara Allain.

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