São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma solitária peça de amor

LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por que, de repente, uma tradução de Beckett? Talvez por saudades da Modernidade, da alta literatura de ontem, de outrora. Ou, se for preciso dar outra razão, para comemorar os 90 anos de seu nascimento.
O "Improviso de Ohio" é uma peça curtíssima, um dramatículo, como o autor caracterizou esse tipo de texto. Foi representada pela primeira vez em 1981, no Drake Union Stadium Theatre, em Ohio, daí seu título. O próprio Beckett a traduziu do inglês para o francês e publicou-a em 1982 ("Catastrophe et Autres Dramaticules", Minuit). A peça trata da perda de um ser amado. Da relação a dois, amante e amado (a), quando só resta um, a sós com uma sombra. Do passado lido a dois num mesmo livro, até a exaustão da história.
Essa peça é singular, no universo de Beckett. De modo geral, as personagens beckettianas são irremediavelmente solitárias, e quando se relacionam entre elas é no regime do sado-masoquismo. Nas obras mais antigas e mais conhecidas do autor, as personagens andam frequentemente aos pares, e a relação entre elas é a de mestre e escravo. O amor, nessas obras, é um mal-entendido ou uma farsa representada por seres grotescos, um arremedo patético, degradado. Mesmo nessa última safra, que inclui o "Improviso de Ohio", mantêm-se essas constantes. "Berceuse (Rockaby)" encena a solidão absoluta; "Catastrophe", o desamparo do ator cruelmente manipulado pelo diretor; "Quoi O—", um interrogatório sob tortura. Em "Improviso de Ohio", não há nenhuma agressividade, nenhuma crueldade; pelo contrário, o que aí se narra é pungente e elevado. Essa é talvez a única peça de amor de Beckett: amor que foi feliz, amor por/de alguém que já morreu e envia outro para confortar o que ficou. Outro que é a sombra desse alguém morto, sombra que é a imagem mesma do que ficou. Texto que pertence ao gênero clássico chamado consolação ("consolatio"), e que foi ilustrado por Sêneca e outros autores latinos, Maynard e Malherbe no século 17.
O que aí se encena é o que Freud chamou de trabalho do luto:
"O luto aparece sob a influência da prova de realidade, que exige de maneira imperativa que nos separemos do objeto, o qual não existe mais. Desde então, a função do luto é trabalhar para retirar do objeto os investimentos, em todas as ocasiões em que o objeto foi dotado de um investimento elevado" ("Angústia, Dor e Luto").
O luto é qualificado por Freud como "um afeto normal". Ele se assemelha à melancolia como perda de interesse pelo mundo exterior; mas, no luto, o sujeito conhece o objeto que perdeu, e na melancolia o objeto é desconhecido. No luto, há perda de objeto, na melancolia há perda do próprio ego. O trabalho de luto é absorvente e exige tempo para cumprir-se.
"Durante esse tempo, a existência do objeto perdido prossegue psiquicamente. Cada lembrança, cada esperança pelas quais a libido estava ligada ao objeto é trabalhada, superinvestida e sobre elas se cumpre o desapego da libido." ("Luto e Melancolia")
A ruptura é lenta e progressiva, de tal modo que, no fim do trabalho, a energia que era necessária para efetuá-lo se encontra dissipada. Na peça de Beckett, o Leitor, tão semelhante ao Ouvinte, encena uma regressão temporária ao narcisismo primário, ocasionada pela perda do objeto. Mas Beckett não precisa de Freud para ser entendido. A psicanálise só confirma o que os poetas sempre souberam; eles precedem o psicanalista, como lembra Lacan.
A peça é composta "em abismo": o Ouvinte ouve um Leitor que lê sua própria história, a qual é a história de um Ouvinte visitado por um Leitor. Mas esse alter-ego não vem para ficar indefinidamente; ele vem para ajudar no trabalho do luto. Ouvinte e Leitor são intercambiáveis, porque colaboram no mesmo trabalho, trabalham a mesma história. Para que esse trabalho se cumpra, é necessário que o sujeito releia (ouça de novo) sua própria história, refaça o percurso de seus passos, muitas vezes, repetidamente, até a exaustão.
O Ouvinte comanda o ritmo e a orientação do trabalho do Leitor. Quando este envereda por caminhos demasiadamente dolorosos, aquele o interrompe com uma batida na mesa, impondo uma transição mais lenta. E não lhe permite voltar atrás na leitura do livro. Há um progresso nesse trabalho: cada vez resta menos a dizer, até que não reste nada. Diferentemente de outras peças de Beckett, a palavra não cessa pela morte ou pela exaustão do falante; ela aí cessa porque o que havia a dizer foi dito. No final, os dois colocam as duas mãos na mesa (abandonando a postura depressiva da cabeça apoiada na mão) e se olham fixamente. O fim do trabalho do luto não é uma euforia, mas é olhar de frente a falta, o real. Como não podia deixar de ser, em se tratando de Beckett, a melancolia prevalece e o fim não é totalmente interpretável.
A grandeza desse texto, como de outros do mesmo autor, está em sua pequenez. Na redução ao essencial de um tema universal. No prodígio de tratar o tema sem sentimentalismo, na nudez absoluta do sofrimento e da compaixão. Na beleza da palavra justa, musical, rítmica. Na plasticidade despojada da cena: duas figuras hieráticas e enigmáticas como esculturas de Giacometti, num cenário reduzido ao mínimo. Por essas duas últimas qualidades, sonora e plástica, o texto é teatral. Não é apenas uma narrativa lida; é uma leitura encenada, visível e audível, corporificada.
Nesse texto, tão breve e condensado como um poema, cada sintagma verbal encontra seu exato lugar, sua precisa extensão. E Beckett é um mestre no uso comedido das palavras, na respiração do texto, em sua modulação pelo silêncio (pausa, cinco segundos, dez segundos) e pelo som da não-palavra (batida). As falas são voluntariamente simples, mera constatação de um estado de coisas, onde emergem com toda a sua intensidade rápidos fulgores líricos.
Linguagem banal como a mesa e as cadeiras de pinho, contraposta aos vestígios de lirismo em algumas evocações com valor de metáforas: os braços de água, a Ilha dos Cisnes. O texto contém repetições que funcionam como estribilhos hipnóticos. As frases são interrompidas e retomadas como numa litania. Às idas e vindas do Ouvinte, referidas no livro, correspondem idas e vindas das palavras obsessivas.
O texto apresenta um jogo matemático com os números 1 e 2. Duas personagens que são uma só. Há uma insistência na palavra "único": "único cômodo", "única janela"; "sem trocar uma única palavra eles se tornaram como que um só". Uma mesa, duas cadeiras. Dois casacos, um chapéu, um livro. Uma janela, dando para o lago dos cisnes (animais que costumam nadar aos pares, carregados de simbolismo mitológico e de tradição lírica). Os dois braços de água que confluem e refluem unidos. Uma cabeça, duas mãos: a direita que sustenta a cabeça, a esquerda que vira as páginas, bate na mesa; a direita que sustém a pulsão de morte, a esquerda que é pulsão de sobrevida; a esquerda que não deixa voltar atrás na leitura, que interrompe com as batidas na mesa, que fecha enfim o livro, para que a direita, já não mais necessária no trabalho do luto, se junte à esquerda sobre a mesa.
Uma linguagem tão condensada e densa exige uma tradução de extrema precisão. No caso desse texto, dispomos de uma "facilidade": a tradução para o francês feita pelo próprio autor. O cotejo entre as duas versões, em inglês e em francês, oferece mais opções para o tradutor, e a versão numa língua latina, uma proximidade maior com o português. Em 1994, foi feita uma boa tradução desse texto por Maria Helena Kopschitz e Haroldo de Campos; o texto foi lido no Bloomsday, tradicionalmente comemorado por iniciativa de Munira Mutran no bar Finnegans. Tomo a liberdade de propor uma outra tradução (leia à pág. 5-5). Minha tradução é mais próxima do texto em francês, enquanto aquela era mais fiel ao texto em inglês. Há algumas diferenças significativas entre o texto em inglês e o texto em francês.
Darei apenas alguns exemplos. Uma frase-estribilho, de extrema importância, é, em inglês, "my shade will comfort you", e, em francês, "mon ombre te consolera". Parece-me que há vantagens em traduzir na proximidade do francês: "Minha sombra te consolará". Além de ser um octassílabo, metro típico das baladas, tem rimas internas (a repetição dos fonemas "on" e "r") que podem ser mantidas em português.
Falando das correntes do rio, diz o Leitor: "How in joyous eddies its two arms conflowed and flowed united on"; o que foi assim vertido pelos tradutores anteriores: "Como em volteios alegres os dois braços do rio confluíam e juntos seguiam seu curso". A versão francesa -"Comme en joyeux remous, les deux bras confluaient et refluaient unis"- é mais sintética e pode ser mantida tal qual em português.
O chapéu referido e apresentado na peça, em inglês é um "old world Latin Quarter hat", que foi traduzido por: "um chapéu velho de aba larga estilo Quartier Latin". Ora, em francês, Beckett fala de "un grand chapeau de rapin du temps jadis", que fica mais sintético e "visível" em português como "um antigo chapéu de artista". No final do texto, há algumas mudanças sutis introduzidas por Beckett no texto francês: "No sound of rewakening" se torna "nul bruit de résurrection". A palavra "ressurreição" tem uma conotação religiosa-cristã mais forte. Parece que, em inglês, Beckett evitou as palavras de raiz latina, mais eruditas e religiosas, que seriam "to console" e "resurrection"; com elas, o texto francês se torna mais solene.
As frases seguintes também se prestam, com vantagens, a uma tradução literal do francês. Em inglês: "Profounds of mind. Buried in who knows what profounds of mind. Of mindlessness"; em francês: "AbŒmes de conscience. AbŒmés dans qui sait quels abŒmes de conscience. D'inconscience". Em português temos, como em francês, a possibilidade de usar a mesma palavra como substantivo e como verbo (e a palavra "abismo" caracteriza a própria composição da peça). Além disso, a palavra "mindlessness", que foi traduzida por Maria Helena e Haroldo por "demência", mostra, em francês, a exata acepção desejada por Beckett: "inconsciência".
Uma última observação, já que é típico dos tradutores observar coisas irrelevantes nas traduções alheias. Não entendo por que meus predecessores traduziram "No sleep no braving sleep" por "Nenhum sono diacho de sono". A versão francesa -"Plus dormir plus oser dormir"- mostra que a peça mantém sempre o tom elevado, sem nenhuma das vulgaridades usadas em outras pelo autor. Aliás, tudo nesse texto é elevado, na expressão como na referência. Nas outras obras de Beckett, os objetos são irrisórios: latas de comida ou de lixo, pequenos utensílios do cotidiano. Aqui, o objeto central é o livro, depositário nobre da memória.
Fascinada por esse texto, há muito eu pensava que uma de suas expressões-chave era de difícil tradução para o português: a expressão "alone together", que em francês dá a estranha fórmula "seuls ensemble", criação de Beckett. A disjunção semântica "sós" e "juntos" emblematiza a relação a dois, evidenciando seus limites (mesmo juntos, cada um é só) e seu milagre (o plural pode se juntar no singular: "seuls ensemble"). O problema, em português, é fônico: "sozinhos juntos" soa muito mal; "sós juntos", pior ainda. Maria Helena e Haroldo optaram por "a sós juntos", que já é melhor, mas ainda apresenta uma certa dificuldade de dicção, o que deve ser evitado em se tratando de teatro.
Uma solução, que acredito melhor, me apareceu de repente, vinda não de meu parco engenho, mas da poesia de um grande poeta de nossa língua. Relendo Fernando Pessoa, reencontrei um poema inacabado escrito por ele logo depois da morte de seu amigo Mário de Sá-Carneiro. E lá está:
"Hoje, falho de ti, sou dois a sós,
Há almas pares, as que conheceram
Onde os seres são almas.
Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes (...) calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós".
Todo o trabalho de luto está entre o "dois a sós" e o "um a sós". A peça de Beckett alegoriza essa passagem. Morto o outro, o diálogo prossegue ("um diálogo numa alma") com o outro incorporado a si mesmo, idêntico a si mesmo como um reflexo ou uma sombra: "Porque há em nós, por mais que consigamos/ Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,/ Um desejo de termos companhia", diz Pessoa no mesmo poema. A mesma sensação de alheamento insone e onírico é expressa pelos dois poetas: "Em seus sonhos (...) ele tinha visto o rosto querido e ouvido as palavras mudas", diz a personagem de Beckett. "O que eu sou é um sonho que está triste", escreve Pessoa. Não há, em Beckett, nenhuma transcendência: nenhum ruído de ressurreição. Como em Pessoa, no poema referido:
"Nunca supus que isto que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei certa e a falsa sorte,
Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro, entroncamento,
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
Mas, seja como for, segue viagem.
A grandeza desses dois poetas modernos os aproxima, e o tradutor se alegra de poder colocar suas duas sombras em diálogo, em linguaviagem (palavra-título de Augusto de Campos). Qualquer que seja o tema, toda grande poesia é consolação, porque ela ajuda na viagem.

Texto Anterior: A impostura do cinema brasileiro
Próximo Texto: Improviso de Ohio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.