São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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O sentido à beira do não-sentido

HAROLDO DE CAMPOS

Na contingência de apresentar leituras públicas do breve texto "Ping", de Samuel Beckett (a primeira, na Universidade Federal Fluminense, em 24 de outubro de 1991; a segunda, no "Sarau Brasileiro", promovido pela Abei -Associação Brasileira de Estudos Irlandeses-, no Finnegan's Pub, São Paulo, em 21 de outubro de 1993), alinhei algumas considerações suscitadas por essa extraordinária composição.
Desde logo "Ping" parecia-me um necrológio suprematista, à maneira do quadrado branco sobre fundo brando de Maliévitch, com a conotação de que, numa cultura como a chinesa (e não por acaso "Ping" se encaminha à linguagem isolante do chinês clássico, de estrutura posicional e léxico monossilábico), o branco é a cor do luto, a alvura é lutuosa. Aliás, a tendência ao tipo isolante de linguagem é apenas extremada em "Ping", já que, segundo Sapir, inere ao inglês moderno (cuja redução emblemática encontra-se no chamado "Basic English").
O luto, em Ping, é hospitalar: brancor de quarto-cárcere de asilo de alienados, de neutra solitária inquisitorial, pontuado por um pingo obsessivo de busca de sentido que se trunca em não-sentido. A técnica de repetição e permutação, a combinatória lúdica, fazem-me pensar, como antecedente, em Gertrude Stein, em cuja linguagem reduzida, todavia, mais versada no jucundo e no irônico, parece não haver o traço metafísico, nadificante, da sintaxe espectral de Beckett, do seu cromatismo paradoxalmente acromático. As palavras curtas, cuja inteligibilidade sintática repousa antes sobre a posição respectiva no eixo de contiguidade do que sobre morfemas específicos de relação (daí a ambiguidade de "Ping" como aquela que afeta a poesia chinesa), convidam a uma leitura "staccato", em curto-circuito. Deixar o sentido sempre à beira do não-sentido. Estética do quase.
PS: Minha transcriação de "Ping" só pôde ser levada a cabo mediante a inestimável colaboração de Maria Helena Peixoto Kopschitz, cujo minucioso preparo do texto (tradução literal, comentada) e cujas sempre oportunas observações de revisão levam-me, com justiça, a associá-la indissoluvelmente à tarefa transcriadora que, ambos, perfizemos. Assinalo, também, que a sugestão de "escaras", na linha 52, para traduzir "scars" deve-se a Lilian Pestre de Almeida, tendo-me sido transmitida com preciso sentido de pertinência pela professora Kopschitz, que assinalou: "Não sei como isto não me ocorreu; pois 'escara' é o correspondente exato de 'scar', do grego 'skhára', através do latim e do francês".
Embora de uso culto e raro, a palavra funciona perfeitamente no contexto repetitivo de "Ping": deixa-se semantizar aproximativamente, ainda perante quem desconheça o seu significado preciso (que a mim evocou-me, desde logo, um verbo euclidiano, anotado com gosto pela palavra nova em minha primeira leitura juvenil de "Os Sertões": "escarificar").
Duas considerações finais: a) tivemos também presente o texto francês "Bing", para fim de consulta ao longo do processo tradutório; b) a disposição em linhas numeradas não corresponde à apresentação corrida do texto original, mas facilita o cotejo, entre este e a tradução, permitindo ao leitor o acompanhamento e a conferência da operação respectiva (1).

NOTA (1). O texto acima será editado no livro "Guirlanda de Histórias - Uma Antologia do Conto Irlandês", que traz também a versão de "Ping" em inglês e textos de James Joyce, Sean O'Faolain, George Moore e Mary Lavin. Seu lançamento será no próximo dia 17, a partir das 19h30, no Finnegan's Pub Pinheiros (r. Cristiano Viana, 358, tel. 011/852-3232, São Paulo). Na ocasião, haverá um show musical com a participação do poeta Marcelo Tápia, do ator e cantor Wellington Nogueira, do músico Daniel Szafran e do cantor Aidan Boyle.

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