São Paulo, segunda-feira, 9 de setembro de 1996
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Como fazer a estatística do desemprego

JOÃO SAYAD

Desça do ônibus no início da rua da Consolação, esquina com a avenida São Luís. Ou pare o carro num estacionamento qualquer ali perto. Mantenha os olhos bem abertos.
Na praça da Biblioteca Municipal, bem cedinho, você poderá ver vários mendigos acordando, embrulhados em cobertores ou cobertos por caixas de papelão.
Se o governo desvalorizar o câmbio, eles não vão nem perceber. Se investir em estradas, também não. Se a taxa de juros cair, mesma coisa. Não estão no mercado de trabalho nem fazem parte da preocupação dos macroeconomistas.
Continue andando em direção à rua Marconi. Na praça, onde as árvores já não fazem sombra, há uma porção de pequenas lojas de roupas masculinas, alguns bares e restaurantes, lojas de livros escolares misturados com papelaria. O movimento está baixo; o gerente, ou o dono da loja, está na porta.
Nesse caso, tenho certeza de que um pouquinho de política keynesiana iria ajudar.
É lógico que eles sofreriam a concorrência dos estabelecimentos franqueados de grandes redes, com marca e publicidade, como o McDonald's ou outros.
Mas acabariam vendendo um pouco mais, contratando outra balconista, investindo um pouco em estoque, reformando algumas prateleiras.
No fim da rua Marconi, esquina com a rua Barão de Itapetininga, você verá uma concentração de homens mais velhos vestidos com cartazes que anunciam as coisas mais diversas: compra-se ouro, precisa-se de datilógrafos, contratamos recepcionistas etc. Em volta deles, uma pequena multidão de jovens, homens e mulheres da periferia, procurando emprego.
Nesse caso, não há dúvida: um pouquinho do que os monetaristas consideram desperdício -juro menor e gasto maior- ajudaria bastante os jovens leitores dos homens-anúncio.
Chegando à praça Ramos de Azevedo, vire à esquerda, no sentido da rua 24 de Maio. Você vai encontrar a alegria de Peter Drucker e Michael Porter -uma porção de microempresários vendendo bolsas, cintos, brinquedos, rádios e muitas outras coisas. Tudo sem imposto. São a economia informal -estão longe do alcance dos juros, do câmbio e dos gastos públicos.
São sensíveis à política municipal com relação aos camelôs. São empresários criados pelo desemprego. Se o desemprego diminuísse, muitos aceitariam atividades mais rentáveis, menos cansativas e menos sujeitas aos humores do administrador regional, dos fiscais e da polícia.
Na rua 24 de Maio, uma porção de lojas populares de eletrodomésticos e eletrônicos -televisores, lavadoras, secadoras, videolasers do mundo inteiro- vende em grandes quantidades, em várias prestações e a juros muito altos.
Parece o melhor setor da economia brasileira, mais uma vez. Foi assim durante a recuperação da economia brasileira durante o regime militar de 64 e é assim de novo. Crescemos puxados a eletrodomésticos e eletrônicos.
Mais para baixo, já perto da avenida São João e do cine Marrocos, estão alguns cursinhos de inglês e de informática. Uma porção de jovens esforçados, com fichários e livros embaixo do braço, passa correndo.
Vida dura -estudo de manhã, trabalho à tarde, mais estudo à noite. Estão em treinamento. Deus queira que exista emprego para todos daqui a uns dois ou três anos.
O que fazer para arranjar emprego para tantos brasileiros que enchem as nossas ruas e parecem formigas, andando rápido em todas as direções?
O pessoal de direita acha que não dá para fazer nada. Os mendigos são mendigos, os camelôs são iniciativa privada, as lojas vazias são ineficientes, e os trabalhadores acabarão arranjando algum emprego se aceitarem salários nominais menores. Chega de paternalismo, cada um por si. Deus por todos.
Acreditam que, se o mercado de trabalho funcionar livremente, o pessoal que faz cursinho disso ou daquilo acaba dando certo.
As lojas quebram ou se globalizam. E os homens-anúncio ou fazem mais anúncio ou não têm importância.
Não é maldade da direita nem falta de sensibilidade. Pode ser otimismo exagerado. Ou pode ser que sintam tanta angústia como nós e se agarrem a teorias tão fortes e dogmáticas como forma de atenuar sua aflição -o mercado resolverá, a flexibilização da CLT resolverá.
O pessoal que tem mais boa vontade também faz confusão. O Comunidade Solidária não liga para mendigo urbano. O PT acha que ser camelô é direito da cidadania. Os defensores da agricultura imaginam que toda essa gente poderia voltar bucolicamente para o campo e plantar soja ou produzir leite não sei para quem.
Alguns economistas acham que, para aumentar o emprego, o remédio é mesmo política industrial, juros menores e gastos do governo.
Os economistas do governo acham que o desemprego é inevitável, uma fase transitória, um sacrifício que será compensado mais tarde. Trata-se do custo da estabilização, da internacionalização da economia e da ansiedade exagerada dos transeuntes. Mais tarde, tudo se resolverá, e cresceremos como a Coréia, com casas como as de Cingapura.
Não sei, não. É melhor tomar um táxi e voltar para casa. A cidade está cada vez mais perigosa.

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